Guerra dos tronos: a história explica por que escoceses são separatistas
Conflito religioso, dinástico, político e nacional está por trás do sentimento independentista que um dia não muito distante desmanchará o Reino Unido
É triste, mas não tem jeito: o arco histórico pende para separar a Escócia da complexa construção política que é o Reino Unido. Os próprios britânicos acreditam majoritariamente nisso, apesar de obstáculos para um segundo plebiscito, como a decisão de ontem da Suprema Corte estabelecendo que uma nova consulta popular tem que ter a aprovação do Parlamento britânico.
Na última consulta, em 2014, a independência foi rejeitada e as pesquisas indicam que, apesar da força do separatismo, que tem a maioria no governo autônomo escocês, pouco mais de 50% dos escoceses ainda preferem continuar na união.
As pulsões nacionalistas, porém, parecem destinadas a prevalecer. A história de escoceses e ingleses, uma das inspirações para a Guerra dos Tronos, com as vastidões geladas do norte e os clãs ferozmente independentes, ajuda a entender por que os primeiros continuam a se achar explorados pelos segundos, mesmo muito tempo depois da fase de conflitos resolvidos na ponta da espada.
Curiosamente, o marco da união entre Escócia e Inglaterra foi pacífico: a união das coroas, de 1603, quando um beco dinástico sem saída levou o rei James VI da Escócia a se tornar, também, James I da Inglaterra. Os dois reinos mantiveram parlamentos, legislação e sistemas judiciários independentes.
James chegou ao trono com uma bagagem pesada. Era filho da rainha Mary, forçada a abdicar em favor dele com o pano de fundo do conflito entre protestantes e católicos. Mary entrou no imaginário popular como a “rainha decapitada”, uma beldade de longa cabeleira ruiva impiedosamente executada pela prima, Elizabeth I, convencida de que ela e o “partido dos católicos” conspiravam para derrubá-la.
Elizabeth nunca se casou nem teve filhos, o que ironicamente tornou James, o filho da mulher que ela havia mandado decapitar, o herdeiro dos dois tronos.
Alguns reis e uma revolução depois, em 1707, a união das coroas virou uma fusão política, com a Escócia absorvida no novo Reino da Grã-Bretanha, com a Inglaterra como potência dominante. Foi tão bem-sucedida que até hoje escoceses ilustres são confundidos com ingleses – para desespero dos locais.
A lista inclui gênios iluministas como Adam Smith e David Hume, inventores como James Watt e Alexander Graham Bell, e personagens fictícios formidáveis como Sherlock Holmes e, por criação, James Bond.
Como os catalães, muitos escoceses se consideram diminuídos, discriminados e prejudicados no retorno dos impostos. Os ingleses dizem exatamente o contrário: subsidiam os irmãos do norte. Têm os números a seu favor. A Escócia gerou 73 bilhões de libras em impostos no último ano fiscal e recebeu 97 bilhões.
O Brexit, que foi rejeitado na Escócia e ganhou com votos da Inglaterra, deixou-os mais descontentes ainda.
Quando Tony Blair comandou as “devoluções”, a criação de governos parlamentares nos três integrantes menores do Reino Unido – Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales –, achava que estava resolvendo democraticamente as questões nacionalistas.
Ao contrário, o separatismo aumentou. A atual primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, é uma das mais arrebatadas representantes do partido nacionalista e republicano. Além de seu próprio parlamento, os escoceses também elegem representantes para o Parlamento britânico, onde os independentistas regularmente esculhambam o governo central – qualquer governo.
A Inglaterra tem 56 milhões de habitantes e a Escócia, 5,5 milhões. O desequilíbrio é intrínseco, mas metade dos escoceses continua achando que dá para conviver – e muitos, na verdade, entendem que sairiam economicamente prejudicados se partissem para a independência.
Nos seus setenta anos de reinado, Elizabeth II fez muito para promover a união com a Escócia, com quem tinha ligações familiares pelo lado da mãe. Mesmo mantando os castelos, o interesse e o kilt com xadrez personalizado, o rei Charles III não tem o mesmo apelo da mãe e isso pode ser favorável ao movimento separatista.
A decisão da Suprema Corte fechou os caminhos, por enquanto, para um novo referendo, mas o separatismo não vai desaparecer por causa disso. Ao contrário, pode até se fortalecer.