Guerra chega à Crimeia e Rússia encena pôr a culpa nos americanos
Cada vez mais furioso com armas providas pelos Estados Unidos à Ucrânia, como no ataque que matou civis em Sebastopol, Putin mostra os dentes
“O envolvimento dos Estados Unidos, o envolvimento direto, em resultado do qual morrem civis russos, não pode ficar sem consequências”, disse o porta-voz do Kremlin, Dimitri Peskov, em mais uma demonstração de que as novas armas americanas estão fazendo um estrago doloroso na guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Para completar, a embaixadora americana, Lynne Tracy, foi chamada para ouvir reclamações, um ritual diplomático que tenderá a se repetir.
O novo ataque de fúria foi decorrente de um bombardeio, no domingo, com mísseis americanos ATACMS. O alvo era militar, mas fragmentos de mísseis atingiram pessoas que curtiam uma praia em Sebastopol, a cidade sede da frota russa, famosa pelo cerco de onze meses que sofreu entre 1854 e 1855, durante a Guerra da Crimeia.
Os vídeos de russos correndo, tentando se proteger numa das situações mais desprotegidas que existem – de roupa de banho, na praia – não devem ter deixado Putin nada satisfeito. Os estilhaços mataram quatro pessoas, incluindo duas crianças, e feriram 150.
Ironia suprema: o porta-voz chamou as mortes, acidentais, de “bárbaras”, enquanto a Rússia já matou mais de dez mil civis e ataca deliberadamente cidades e prédios residenciais sem nenhuma importância militar, fora espalhar o terror. Um dos mais recentes foi o ataque contra Kharkiv com as novas bombas de seu arsenal, um artefato de 3,3 toneladas que “surfa” por longas distâncias até o alvo. É mais barata que mísseis – e muito letal.
DOMINGO RUIM
O bombardeio coincidiu com o ataque terrorista no Daguestão, república muçulmana do Cáucaso que faz parte da Federação Russa, com o terrível incêndio de uma sinagoga histórica e o mais terrível ainda assassinato, por degolação, de um padre de uma igreja ortodoxa.
Não foi um bom domingo para Putin, que tenta intimidar a opinião pública ocidental com seguidas ameaças de que vai armar “países e entidades” inimigos dos Estados Unidos. É uma ameaça considerável, embora vaga – irá a Rússia municiar os houthis do Iêmen? As milícias xiitas do Iraque? A multiplicidade de extremistas xiitas? Não é esse um dos caldos de cultura de onde brotam exatamente os radicais muçulmanos que barbarizam em território dos “infiéis” russos?
Muito das crescentes ameaças de Putin estão relacionadas à falta de progresso de uma contraofensiva que parecia devastadora, apesar da vantagem em homens e armas que a Rússia tem – a ponto da Ucrânia ter que imitar os criticados inimigos e prometer anistia a criminosos condenados para reforçar as sobrecarregadas linhas de defesa.
Acossada na linha de frente, a Ucrânia tem conseguido desfechar golpes consideráveis, através de drones e mísseis, contra as forças navais russas. Já conseguiu afundar nada menos que quinze embarcações inimigas, incluindo o Moskva, a nau capitânia da frota do Mar Negro bombardeada em 2022.
FOME E CÓLERA
Os novos mísseis americanos e europeus aumentam essa vulnerabilidade russa. A frota de Putin já foi deslocada de Sebastopol, o tradicional porto usado desde os tempos imperiais como um ativo de altíssimo interesse estratégico por permitir a mobilidade naval mesmo durante o inverno, quando o Báltico fica congelado.
Foi em Sebastopol que a Rússia, ainda no tempo dos czares, sofreu o golpe que a fez perder a Guerra da Crimeia, um conflito quase esquecido – menos, obviamente, pelos russos, que enfrentaram uma aliança entre Reino Unido, França, Império Otomano e Sicília-Piemonte, um reino que não existe mais.
Os britânicos também se recordam da dureza dos combates, tendo que se locomover com neve até o joelho, com falta de suprimentos, cólera e perda dos cavalos que morriam de fome. A Crimeia também ficou na imaginação popular pela Carga da Brigada Ligeira, o romântico episódio em que a cavalaria britânica recebeu uma confusa e errada ordem de atacar uma posição em que os russos tinham a vantagem do terreno – e dos canhões na montanha.
O absurdo ato de heroísmo – dos 697 homens, voltaram apenas 198 – ficou imortalizado no poema de Tennyson e também como sinônimo da arrogância de comandantes aristocratas que chegavam em seus próprios iates para a guerra e queriam ser heróis, geralmente com o sangue dos outros.
QUEDA DO REGIME
O frio alucinante também deixou palavras para o vocabulário do vestuário, como balaclava (nome de uma batalha que se tornou sinônimo do gorro que deixa apenas os olhos de fora) e cardigan (um dos lordes esnobes que deu nome a um colete de tricô abotoado na frente, que depois ganhou mangas).
O projeto de Putin é convencer a opinião pública ocidental que a Ucrânia é uma causa fútil, como foi a Guerra da Crimeia, e muito mais perigosa por envolver um lado detentor de armas nucleares.
É por isso que, desde o começo, se sabe que a Rússia não pode perder para a Ucrânia – uma humilhação que levaria à queda do regime, mas muito possivelmente seria confrontada com o uso de armas nucleares táticas, com consequências inomináveis.
Como a Rússia tem demonstrado que também não pode ganhar de um adversário menor e mais fraco, continua o impasse – e a guerra também.
“No vale da morte, cavalgaram os seiscentos”, diz o poema de Tenysson, consagrado como símbolo da inutilidade de combates heróicos. “Era deles o dever de marchar e morrer”, não de fazer perguntas sobre a ordem absurda. Virou até música dos marines americanos.