“Existe algo supremamente ridículo na composição das monarquias. Uma das provas naturais mais fortes da loucura do direito hereditário dos reis é que a natureza o desmente. Caso contrário, ela não o ridicularizaria com tanta frequência, dando à humanidade asnos no lugar de leões.” Quem escreveu isso foi Thomas Payne, revolucionário e encrenqueiro em doses tão formidáveis que conseguiu se indispor com George Washington, a quem seus panfletos incendiários haviam municiado no movimento pela independência americana, e ser preso durante a Revolução Francesa. Payne tinha em mente George III, o “rei louco” que acabou perdendo a América para o improvisado exército de Washington e viveu longos períodos de pura insanidade, produto de uma rara doença sanguínea chamada porfiria.
Que a monarquia tenha sobrevivido a reis ruins é mais miraculoso que a aclamação universal conseguida em vida e turbinada na morte pela rainha Elizabeth II. O festival quase interminável de castelos majestosos, coroas suntuosas, desfiles solenes, uniformes vermelhos, dragonas douradas e corneteiros de todo tipo, em lugar das críticas previsíveis — “ostentação”, “esbanjamento”, “arcaísmo” —, aumentou um sentimento público de luto e gratidão pela rainha morta.
“As sociedades valorizam o sentimento de continuidade histórica de rainhas e reis”
Defensores da monarquia costumam dizer que países com reis ou rainhas são todos ricos, bem-sucedidos e democráticos. Dificilmente o sistema monárquico pode ser identificado como o responsável por esse sucesso, embora proporcione um sentimento de continuidade histórica que muitas sociedades valorizam. As monarquias atuais são produto de processos políticos diferentes. A da Espanha foi aprovada no plebiscito de 1976 para consolidar o fim do regime franquista. A da Suécia tem origem em um general de Napoleão. A da Holanda foi eleita pela poderosa burguesia mercantil. E a do Japão deve a sobrevivência ao general Douglas MacArthur, que, sabiamente, usou a figura do imperador Hirohito para facilitar a ocupação americana. Em vez do banco dos réus por crimes de guerra, ele ganhou o papel de monarca constitucional na carta escrita em uma semana por assessores de MacArthur. Só no Reino Unido, que não tem uma Constituição unificada, o papel do monarca é difusamente definido e influenciado por fatores subjetivos. Foi um jornalista, Walter Bagehot, fundador da revista The Economist, quem sintetizou melhor os parcos direitos reais: “O direito de ser consultado, o direito de encorajar, o direito de advertir”.
A formidável Helen Mirren encarnou no cinema uma rainha quase mais real do que Elizabeth II, surpreendida pela reação popular à morte de Diana. Nove dias antes da rainha, morreu Mikhail Gorbachev, um homem que realmente mudou a história. Um único líder estrangeiro foi a seu enterro, o húngaro Viktor Orbán, que era um jovem agitador democrata quando o comunismo ruiu. Não ter de lidar com a crua realidade da política ajudou Elizabeth a pairar acima do bem e do mal e fortalecer a popularidade de um regime que o sem graça e sem carisma Charles III agora tem de tocar para a frente. “O longo hábito de pensar que uma coisa não é errada lhe confere a aparência superficial de ser certa”, avisou Tom Payne.
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807