EUA: é permitido roubar, com leis e autoridades condescendentes
Em Nova York, furtos em lojas aumentaram 81% e a fuga de lojas de rua reflete a decadência em áreas centrais de grandes cidades com crime liberado

“Estamos sendo agredidos e aterrorizados, com danos para nossa saúde física e mental”.
O apelo não partiu da periferia do Terceiro Mundo, mas de um grupo representando quatro mil comerciantes de Nova York, levados ao desespero com a condescendência das autoridades que criou uma espécie de “liberou geral” para os furtos em lojas que muitas vezes evoluem para agressões contra proprietários e funcionários.
Os mercadinhos que fazem parte da paisagem urbana da cidade não têm capital para absorver a inacreditável quantidade de furtos, constantes e repetidos. Medidas extremadas, como trancar com cadeados os freezers onde são expostos sorvetes e carnes, acabam prejudicando ainda mais as vendas — a queda foi calculada em 20%.
O aumento de 81% desse tipo de crime obviamente não é fruto do acaso, mas do ativismo judicial e político. Num fenômeno conhecido em outros países, seus defensores consideram que os autores desse tipo de crime são vítimas da sociedade. Em grandes cidades onde prefeitos e promotores — cargo escolhido por voto em parte dos Estados Unidos — do Partido Democrata descriminalizaram o furto, em especial com a abolição do consagrado sistema americano de pagamento de fiança para garantir a punição de criminosos comprovados, o crime se disseminou de maneira incontrolável. Muitas lojas de rede simplesmente fecham as portas, acelerando a degradação de áreas centrais.
O fenômeno é mais impressionante em São Francisco. A linda cidade californiana tem hoje um centro totalmente tomado por sem-teto, viciados em drogas e lojas fechadas. Uma cracolândia à americana que se repete em Los Angeles, com 30 mil sem-teto, uma massa de “mão de obra” à disposição do crime. Na Califórnia, furtos até 950 dólares por dia são, na prática, relevados.
Os comerciantes menores simplesmente se desesperam e pedem medidas como aumentar a gravidade criminal de agressões contra lojistas e funcionários. Atitudes como filmar o ladrão com o celular podem redundar em ameaças de violência física. Funcionários e seguranças são orientados a não fazer nada. Num dos casos mais bizarros, a direção da rede de roupas esportivas Lululemon, demitiu duas funcionárias que chamaram a polícia quando uma loja estava sendo furtada. Elas foram acusadas de reagir e, horror dos horrores, até confrontar os três mascarados que fizeram uma limpa na loja, “contrariando a política da empresa”.
Alguns “habituês” são tão contumazes que têm até apelido, como o “Hamlifter”, ladrão de hambúrgueres em Nova York. Ele já foi filmado saindo com mais de dez embalagens de carne de um supermercado conhecido, da excelente rede Trader Joe’s. O prefeito Eric Adams reagiu com o blablablá habitual e prometeu um “plano abrangente”, em maio. Ele repetiu um número impressionante: 327 ladrões contumazes foram responsáveis por mais de 30% dos 22 mil furtos cometidos em lojas em 2022. Entre as medidas cogitadas, uma das mais ridículas é “treinar funcionários em táticas” para desescalar o nível de tensão na hora do roubo. Ou seja, os inocentes passam a ser responsáveis pelo comportamento dos culpados.
Resultado nenhum. Adams, um ex-policial, é um dos defensores do oposto da tolerância zero que diminuiu drasticamente o crime em Nova York da época do prefeito Rudy Giuliani. Um dos argumentos mais ensandecidos contra a tolerância zero é que Giuliani se tornou um trumpista exaltado. O que isso tem a ver com os resultados que ele mostrou como prefeito? Nada, obviamente. Entra tudo na conta da extrema politização com que qualquer assunto hoje é tratado.
Escrevendo no New York Post, Jared Klickenstein usou o seu próprio caso como exemplo: entre 2014 e 2015, viveu na rua, em Los Angeles, como viciado em drogas. Bancava o vício em heroína e crack furtando em lojas “profissionalmente” (na gíria em inglês, isso se chama “boosting”). Faturava cerca de 350 dólares por dia. Os receptadores passavam listas com as encomendas, geralmente medicamentos, produtos de higiene e de beleza. A lei, aprovada em plebiscito em 2014, sobre o limite de 950 dólares por dia em mercadorias furtadas “garantia que eu não poderia ser condenado a pena de prisão”, embora frequentemente passasse alguns dias na cadeia. Estava liberado para roubar.
Klickenstein teve que largar o vício físico quando cometeu um crime maior e pegou seis meses de prisão. Foi mais difícil abandonar a dependência mental, diz ele, hoje defensor de uma linha dura no tratamento de viciados que chegaram ao fundo do posto: internação compulsória por um a dois anos, a única forma que acha, por sua experiência, ser possível funcionar.
É claro que existem os pobres coitados enlouquecidos pela droga que furtam apenas para comer, mas o roubo de lojas tem muito pouco de crime desorganizado. Uma reportagem do jornal Washington Examiner mostra como os cartéis mexicanos expandiram seus negócios nos Estados Unidos e entraram no ramo das mercadorias furtadas em farmácias, supermercados, lojas de tênis e butiques de luxo. Os produtos roubados são vendidos online e o dinheiro é lavado através de intermediários chineses, diz o jornal.
Como tantas outras coisas nos Estados Unidos, os números são de derrubar o queixo.
“É um negócio de 70 bilhões de dólares por ano”, disse o agente especial Eric DeLaune, de uma força-tarefa entre o Departamento de Segurança e o serviço de imigração.
As redes organizadas que promovem os roubos em lojas estão infiltradas em todos os estados americanos. As quadrilhas são organizadas pelo clássico sistema de divisão de tarefas: os ladrões, ou ”boosters”; os receptadores, ou “fencers”; os responsáveis por apagar a origem dos produtos roubados, chamados de “cleaners”, e os encarregados de vendê-los em lojas físicas ou virtuais. O dinheiro lavado entra no México via intermediários chineses, da mesma forma que o produto do tráfico de fentanil, a droga maldita que mata quase 100 mil americanos por ano.
Em escala nacional, o número de roubos em lojas aumentou 26% entre 2020 e 2021.
Num caso espantoso de inversão de valores, um segurança da rede Home Depot (o nome oficial é funcionário para a prevenção de perdas), Blake Mohs, foi morto por uma mulher que tentava furtar um carregador de celular numa loja de Pleasance, na Califórnia. Depois de atirar no segurança, a mulher fugiu de carro com o namorado e o filhinho de dois anos. A promotoria a enquadrou numa categoria mais branda, praticamente uma garantia de punição leve ou, na prática, inexistente. Mais um pouco, a família do morto teria que pagar uma indenização à assassina.
“Uma coisa difícil de mudar é a cultura”, constatou Tim Griffin, procurador geral do Arkansas, obviamente um estado onde o nível de leniência é muito baixo. “Isso se reflete no país inteiro, mas particularmente em algumas de nossas cidades, onde existe uma cultura de que é possível infringir a lei, roubar, assaltar casas, fazer o que quiser e os agentes federais e estaduais não vão se mexer. Está aí o problema. E ele vai muito, muito além do crime organizado no varejo”.
No país que celebrizou o império da lei e da ordem, desde os xerifes durões das pequenas cidades do interior aos incorruptíveis agentes do FBI, em muitos setores hoje predomina o império da ladroagem.
É um sistema copiado até em países que nunca passaram pela fase do crime e castigo, um avanço civilizatório protagonizado pelo estado em seu papel mais vital, o de garantir a segurança da sociedade, e entraram direto na decadência da leniência em nome, falsamente, da justiça social.
Entre as medidas anunciadas em Nova York pelo prefeito Eric Adams, está a instalação de quiosques para “conectar indivíduos em necessidade crítica de recursos governamentais e serviços sociais”.
Alguma chance de funcionar?