Javier Milei tem alma de ator, de comediante daqueles que fazem stand-up, espetáculos de humor baseados na linguagem ferina, rápida e além dos limites aceitáveis. É impossível não rir com uma das suas tiradas, entre as inúmeras que circulam na internet, sobre a inferioridade estética do socialismo. “O Guggenheim foi inventado do nosso lado. As Torres Gêmeas estavam do nosso lado. Tudo o que tem de mais lindo está do nosso lado”, exemplifica. “Como são os edifícios do outro lado da cortina de ferro? São quadrados, cinzentos, escuros, sem janelas. São imundos. Inventamos o biquíni e a minissaia.” O pessoal cai na gargalhada, inevitavelmente.
Passar da comédia para o teatro político é uma transposição que já foi feita por Volodymyr Zelensky na Ucrânia. Contrariando todas as expectativas, Zelensky se transformou num respeitável líder de um país em guerra (com exceção daquele pessoal que continua a adorar a arquitetura soviética). E se Javier Milei ganhasse a eleição numa Argentina, como a Ucrânia, enojada com a política habitual e, em vez da catástrofe tão unanimemente antecipada, começasse a implantar reformas que fazem sentido? E se conseguisse a mágica de livrar o peso de um Estado falido das costas de cidadãos que não aguentam mais tantos fracassos, oprimidos pela segunda inflação mais alta do mundo e o esfarelamento da moeda?
“Passar da comédia para o teatro político é transposição que já foi feita por Volodymyr Zelensky”
Em outro dos atos em que exerce sua histrionice, Milei está diante de um quadro com os nomes dos ministérios grudados com velcro e vai arrancando um por um. Quem olha para o loteamento feito em Brasília, com a criação de ministérios que nem os titulares sabem o nome, não pode deixar de sentir um certo alívio à medida que os nomes vão sendo jogados fora. Restam oito, só os essenciais.
Mas como ele negociaria com os aliados que teria de buscar em outros partidos para fazer seus projetos passar pelo Congresso? O que usaria para o toma lá dá cá? É por causa disso que as chances de sucesso do fenômeno argentino são praticamente perto de zero. Milei é uma encarnação surpreendente e contemporânea do clássico sobre candidatos inaceitáveis para o establishment: se se candidatar, não ganha; se ganhar, não assume; se assumir, não governa. Uma amostra disso foi vista no ano passado no Reino Unido, quando Liz Truss chegou cheia de ideias ultraliberais ao cargo de primeira-ministra e durou um mês e meio. Pelo sistema parlamentarista vigente no país, foi mais fácil a “intervenção”: os poderes constituídos, inclusive de seu próprio Partido Conservador, se reuniram e disseram “não vai dar”. Liz virou um rodapé da história.
Existe uma teoria segundo a qual toda a tragédia da Argentina, com sua galeria de personagens maiores do que a vida — Gardel, Perón, Eva, Che, Maradona, Messi, Cristina, Francisco —, é justificada por ter produzido Jorge Luis Borges, o colossal escritor que, mais do que um mundo, produziu universos. Entre suas tiradas sarcásticas de conservador com horror ao populismo, uma das mais citadas estabelece: “A democracia é um erro estatístico porque na democracia quem decide é a maioria e a maioria é formada por imbecis”.
Que lições estará aprendendo Milei para não repetir o infindável ciclo de autodestruição e evitar a comprovação da imbecilidade da maioria?
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860