Degolados: aumenta rejeição a abate por exigências religiosas
Para muçulmanos e judeus praticantes, animais precisam ter a garganta cortada sem nenhum método atenuante, o oposto das regras humanitárias

Quem acredita que a carne vem de pacotes em gôndolas de supermercados provavelmente ficaria em estado de choque se visse as linhas de montagem para o abate de animais.
Mesmo com todas as regras de abate humanitário, baseado num tratamento que seja o menos violento possível e inclua a insensibilização dos animais maiores, a coisa é feia.
E fica horrenda no caso do abate segundo as regras religiosas de judeus e muçulmanos, bastante parecidas: os bichos não podem ser insensibilizados e devem ser mortos com uma faca afiada que corte carótida, jugular e traqueia num só golpe.
Não é difícil imaginar os dois movimentos contrários: enquanto o resto do mundo procura cada vez mais métodos chamados humanitários para consumir proteína animal, sem falar no aumento do vegetarianismo por motivos éticos, os praticantes das duas religiões não consideram a hipótese de flexibilizar as escrituras e suas interpretações.
O mais recente confronto está acontecendo na Áustria, onde o abate segundo regras religiosas é excepcionalmente permitido.
Judeus e muçulmanos praticantes teriam que se registrar para comprovar a necessidade dessa exceção, condicionada a aceitar a insensibilização dos animais. Essa exigência, sem exceção, já vigora em quatro países europeus: Dinamarca, Suíça, Holanda e Polônia.
Complicação do caso austríaco: um dos defensores da proposta é Heinz-Christian Strache, o líder do Partido da Liberdade, originário de um mal disfarçado neonazismo.
Todas as rupturas e denúncias do passado não servem para limpar a ficha de Strache, ainda mais com um passado como o da Áustria.
Apesar de minoritário, o partido é essencial para a coalizão que governa o país, tendo como primeiro-ministro o irritantemente jovem Sebastian Kurz.
Embora Kurz tenha garantido que é contra a interferência no abate ritual e os partidos de direita na Europa hoje se preocupem hoje muito mais os fundamentalismo islâmico do que com o velho antissemitismo, Strache usou um cartum com uma espécie de piada, em alemão, referindo-se aos mandamentos religiosos judaicos.
“Schächten verboten”, dizia o cartum com uma ovelhinha sobre o mapa da Europa. É piada em alemão, não exatamente de rolar de rir, significando “abae ritual proibido”, mas provocou as reações previsíveis.
“Animais não são objetos, mas criaturas dignas de proteção que não devem ser torturadas”, espicaçou o austríaco, que tem a posição de vice-primeiro-ministro.
“Schächten” define em alemão as práticas de abate que fazem parte das rigorosas regras dietárias judaicas chamadas kashrut ou kosher.
ANIMAL TOTÊMICO
Pelas regras muçulmanas, o nome de Alá deve ser invocado a cada vez que um animal é abatido. Os animais precisam ser totalmente sangrados para entrar na categoria halal, aquilo que é permitido de acordo com o Corão e os comentaristas consagrados, ao contrário do que é haram, ou proibido.
Na Torá, a parte da Bíblia exclusivamente judaica, o exigente Iavé é um pouco vago em relação ao abate. Bois e ovelhas poderão ser abatidos “conforme eu te ordenei” diz Ele no Deuteronômio (Debarim para os judeus).
Como esta lei não aparece em nenhuma outra parte, ao contrário das extensas especificações sobre animais permitidos (ruminantes de casco fendido) e proibidos (porco, camelo, coelho), os mandamentos sobre o abate foram transmitidos oralmente até que chegassem às compilações feitas pelos dois Talmudes, o da Babilônia e o de Jerusalém.
Na época dos Talmudes, os sacrifícios animais, dos quais derivaram as regras de abate, não existiam mais. A destruição do Segundo Templo, no ano 70 da era cristã, conduziu à desativação dos sacrifícios.
Na Grécia Antiga, a carne animal também vinha dos sacrifícios nos templos – o mais famoso deles é o esculpido em mármore nas paredes laterais do Partenon, na procissão votiva remontada no British Museum que representa o ápice artístico da civilização ocidental.
Criar um aparato ritual para o ato essencialmente violento da morte de um animal elevava-o à categoria de sacrifício.
Os gregos consideram o consumo de carne não sacrificial coisa de bárbaros. Criaram até palavras elegantes como hecatombe para definir o sacrifício, excepcional à época, de cem reses – coisa pouca diante das linhas de produção da indústria contemporânea da carne.
Sem um histórico de sacrifícios em locais religiosos, os muçulmanos têm a mais disseminada prática de abate coletivo de animais, o Eid al Adha.
Nesse dia do ano, que acontece durante o Ramadã, o mês do jejum, os praticantes em muitos países – evidentemente não em todos – matam um animal, geralmente um carneiro, embora todos os permitidos entrem na categoria.
Em países como o Paquistão, a matança acontece no meio da rua. Sem a habilidade dos carniceiros profissionais, os fieis comuns praticam abusos pavorosos. As imagens de bois e camelos sangrando, às vezes com as patas cortadas, são chocantes.
Também é impossível não associar este abate ritual às degolações, seguidas de decapitação, de sequestrados pelos extremistas do Estado Islâmico.
Filmadas em todos os detalhes sádicos justamente para infundir o terror, sem sequer a venda nos olhos que, no caso do animais, atenua o pânico, elas trouxeram para o século XXI práticas que a maioria da humanidade associava a um passado distante.
Na origem das práticas de muçulmanos e judeus está o sacrifício máximo exigido a Abraão: o de seu filho Isaac, substituído na última hora, depois da prova de fé total, por um animal. Totêmico, se quisermos entrar no terreno da interpretação cultural.
Das três grandes religiões derivadas do tronco abraâmico, o cristianismo é o único nascido sem a prática de sacrifícios – substituída pelo maior de todos eles, o do próprio Filho de Deus, e ritualmente repetido através da transubstancialização, na eucaristia.
PREPÚCIO CORTADO
Os conflitos culturais com as regras dietárias são maiores, evidentemente, quando existem populações muçulmanas convivendo com outros grupos. Na França, virou bandeira política da direita promover o consumo de carne de porco nas escolas, como forma de reafirmação identitária – a carne muitas vezes é tirada para acomodar as exigências de alunos muçulmanos.
Ao contrário da religião islâmica, com seus 2,5 bilhões de seguidores e espírito missionário – converter os infieis -, a religião judaica não quer saber de novos integrantes. Quem nasceu (via linhagem materna), nasceu, quem não, que continue de fora.
Quanto mais ortodoxo for o ramo, mais resistente às conversões. Existem apenas 15 milhões de judeus no mundo: menos de 7 milhões em Israel e os demais espalhados nas múltiplas vias da diáspora.
Em Israel, toda a alimentação é kosher, para eliminar problemas entre praticantes e não-praticantes. Os palestinos cristãos, em processo de desaparecimento, como em outros países do Oriente Médio, podem seguir suas regras, mas em complicado para uma minoria da minoria.
No resto do mundo, fora dos bolsões ortodoxos, poucos judeus seguem as restrições alimentares que podem ser tão exigentes a ponto de requerer cozinhas separadas para evitar a proibidíssima mistura de carne com produtos lácteos. No máximo, fazem jejum, quebrado com pratos kosher durante o feriado religioso mais importante, o Yom Kippur.
Devido às perseguições praticadas em diferentes ondas de antissemitismo, culminando com a abominação nazista, qualquer restrição a práticas religiosas, ainda que seguidas por uma minoria dos próprios judeus, provoca reações de repúdio.
Isso que não vamos entrar, dessa vez, na questão da prega cutânea do pênis cortada, ritualmente, nos meninos – com menos de um mês, para os judeus; por volta dos sete anos para os muçulmanos. A prática é quase universal mesmo entre judeus não-religiosos.
Se defensores dos direitos dos animais já protestam veementemente contra o abate ritual – nos casos mais exaltados, comparando o tratamento dado a eles ao Holocausto -, imaginem as reações ao corte do prepúcio em bebês ou crianças.
Isso sem contar que a circuncisão dos meninos não afeta o prazer sexual, ao contrário da mutilação genital de meninas, praticada em em parte dos países muçulmanos, especialmente os do continente africanos.
Proibida em todos os países ocidentais, ela continua a ser amplamente praticada. Não são apenas os animais que precisam de defensores.