Dá para imaginar entrar no British Museum sem parar diante do negro fascínio da Pedra de Roseta, o fragmento que decifrou o Egito antigo, e depois ir direto ver as esculturas do Partenon, o ápice jamais superado da civilização humana?
Pois o que parecia impossível, tendo se tornado nos últimos anos quase inevitável, diante de mudanças culturais profundas, já está virando realidade.
O British Museum fez um acordo com a Grécia de “intercâmbio cultural” do conjunto célebre, conhecido na Inglaterra como “os mármores de Elgin”, referência ao conde que os removeu do templo original, levando-os para seu próprio castelo.
Mesmo à época – entre 1801 e 1812 -, quando o império britânico parecia infalível, a remoção foi contestada e virou uma causa nacional à medida em que a Grécia conquistava a independência do Império Otomano e refazia a identidade nacional.
Os mármores são propriedade do British Museum, comprados pelo equivalente, hoje, a cinco milhões de libras, depois que um divórcio caro arruinou os planos de lorde Elgin de doá-los à nação. Ele havia gastado o dobro para removê-los da Grécia, num processo que levou parte dos fragmentos de 2 500 anos ao fundo do mar, num naufrágio dramático. Demorou dois anos só para recuperar esse carregamento.
O caso foi tão discutido desde o começo que existe uma lei específica, aprovada pelo Parlamento – a última instância – proibindo a devolução da obra de Fídias, o maior escultor da história. Daí a alternativa do “intercâmbio”, criada nas negociações comandadas pelo atual presidente do museu, George Osborne, ex-ministro da Fazenda durante o governo conservador de David Cameron.
É difícil imaginar que, uma vez enviados de volta a seu berço, a Grécia os devolva. O Museu da Acrópole foi construído especialmente para acomodar esculturas do Partenon que ficaram no país, deixando um espaço para as que estão no British.
O argumento do British sempre foi que o conjunto escultórico da frisa de 72 metros que circundava o mais célebre de todos os templos ficava aberto à visitação de pessoas do mundo inteiro – e sem pagar ingresso, agradecem todos os turistas -, como compete a um patrimônio da humanidade.
Sucessivos governos gregos não se comoveram com o argumento. É impossível dizer que é injusta sua reivindicação. Mas o que empurrou a devolução foi o revisionismo histórico, quando não histérico, associado ao pensamento do novo marxismo que exige condenar, em massa e por princípio, tudo o que as sociedades brancas, colonialistas, escravistas e um vasto etc, fizeram.
No Reino Unido, esse processo é chamado de “descolonização”.
O primeiro passo para uma devolução que, se levada adiante, esvaziará grandes museus como o British e o Louvre, foi dado pelos ingleses com os Bronzes de Bênin. O fabuloso conjunto de placas de bronze (vindo da Europa e trocado por escravos), datadas de diferentes séculos, ornamentava o palácio do rei de Bênin, o Obá, e foi deliberadamente saqueado, em represália pelo massacre de uma delegação britânica, em 1897.
O imperialismo funcionava assim. E os vencedores levam a fama – e o ônus.
“O fato de que os objetos foram tirados de um reino da África Ocidental que dificilmente poderia ser confundido com uma pacífica comunidade vegana – o Bênin enriqueceu com o tráfico de escravos no Atlântico e a matança de elefantes; praticava sacrifícios humanos e possivelmente canibalismo ritual – não sacia o apetite dos que exigem sua devolução”, escreveu Michael Mosbacher na Spectator.
Fator complicador: o reino original ficava em parte no que hoje é a Nigéria e alguns dos bronzes devolvidos na década de cinquenta reapareceram no mercado clandestino de obras de arte.
No British, muito mais do que na Nigéria, pessoas de todas as origens podem conferir a sofisticação da obra de gerações de artistas africanos. Um argumento obviamente inválido para intelectuais como Dan Hicks, professor de arqueologia e curador do Pitts River Museum, de Oxford.
Hicks defende o puro e simples “desmantelamento físico da infraestrutura branca” de todos os museus antropológicos e etnográficos (lá se vai o lindo Quay Branly de Paris; e, claro, lá se vão instituições de grandes universidades como Oxford e Cambridge, que têm comitês de descolonização dispostos a julgar o passado por critérios do presente até suas consequências finais – o que implicaria no fechamento das próprias faculdades milenares).
A chamada Wellcome Collection, parte de um museu em Londres dedicado a artefatos médicos, já fechou inteiramente, em novembro, uma ala específica voltada para curandeiros – ou praticantes de medicina tradicional, antes que reclamem. A exposição de artefatos colecionados e doados por Harry Wellcome, pioneiro da indústria farmacêutica, “perpetua uma versão da história médica que é baseada em teorias racistas, sexistas e capacitistas”.
E se o Egito quiser de volta os tesouros que preenchem salas e mais salas do British e do Louvre? A Alemanha devolveria a Nefertiti de sublime beleza?
Na verdade, já existe um movimento nesse sentido, pedindo, entre outras coisas, o retorno da Pedra de Roseta, “um símbolo da violência cultural ocidental contra o Egito”, segundo a egiptóloga Monica Hanna.
A pedra com inscrições em três escritas – hieróglifos, demótico (uma versão mais fácil da “língua dos deuses”) e grego – era usada como material de construção numa fortificação em Rashid (Roseta, para os franceses que a descobriram). Os britânicos derrotaram o exército napoleônico e levaram a lápide que abriria as portas para o mundo da linguagem perdida dos hieróglifos.
Napoleão provavelmente foi o maior saqueador de todos os tempos, considerando-se que teve acesso maior ainda do que os nazistas a muitos dos tesouros mais preciosos do mundo. Basta andar pelo Louvre para ver.
Símbolos de uma quase eternidade, contraditoriamente os mármores do Partenon evocam a impermanência da vida e a fragilidade das instituições humanas. Originalmente, eram pintados em cores vivas. A parte mais importante, o nascimento da deusa Atenas saída da cabeça de Zeus, foi removida provavelmente quando o templo virou uma igreja cristã, no século VII – depois virou mesquita. A prodigiosa estátua de Atenas, em ouro e marfim, já tinha sido saqueada há muito tempo.
Restaram as deusas sem cabeça, sobreviventes da explosão e do incêndio que derrubou as paredes e o teto do templo transformado em fortaleza e paiol pelos otomanos em guerra, atingido por um canhão veneziano em 1687.
Transformar o mármore em túnicas tão esvoaçantes que parecem flutuar e, por baixo delas, os corpos pulsantes de vida é um prodígio que atravessou a história, inspirou grandes artistas e criou um padrão insuperável de beleza. Palavra esta que hoje é coisa de museu. Se isso ainda existir.