Confissões de Obama: adivinhem quem ele mais detesta
Netanyahu, claro. Presidente faz uma precoce e brilhante análise de sua política externa

Presidentes americanos costumam esperar um ou dois anos, depois que deixam a Casa Branca, para escrever um livro em que defendem seus governos, contam detalhes inéditos e faturam um extra polpudo – o contrato de George Bush foi de sete milhões de dólares. Barack Obama fez isso esta de maneira inédita. Deu uma série de longas e francas entrevistas sobre política externa, usando palavras raramente ditas por um presidente em exercício sem o manto do anonimato. Ele falou a Jeffrey Goldberg, da revista The Atlantic, com quem tem uma relação especial: diverge dele em vários pontos, mas não o menospreza por inferioridade intelectual ou deformidade ideológica. Obama claramente se considera superior aos interlocutores habituais – talvez porque seja mesmo. E já disse isso.
A entrevista é centrada no episódio que representou o maior fiasco da política externa de Obama: o dia de agosto de 2013 em que ele recuou e não fez nada, depois de dizer que se a Síria de Bashar Assad usasse armas químicas, atravessaria um limite estabelecido pelo próprio presidente americano e seria punido com a força. Obama defende seu recuo com bons argumentos e, de forma geral, toda a sua política para o Oriente Médio, caracterizada por uma intervenção moderadíssima, à qual é atribuída parte da responsabilidade pelo inferno aparentemente sem saída estabelecido na Síria e nas áreas controladas pelo Estado Islâmico.
Não havia um consenso entre outras potências sobre qual deveria ser a reação ao uso de gás sarin contra civis, que como sempre nessa guerra maldita estavam numa área disputada, provocando cenas dramáticas como criancinhas morrendo com as vias respiratórias e os olhos queimados. Ao todo, foram 1 400 vítimas. François Hollande era o maior defensor da intervenção armada. David Cameron fez discursos comoventes – mas o Parlamento britânico desautorizou o primeiro-ministro e votou contra. Angela Merkel, mencionada como um caso raro de governante que Obama respeita, já tinha vetado uma eventual participação alemã.
Mas Obama diz que um elemento de peso definitivo para sua decisão, uma surpresa mesmo para todos o que o rodeavam, foi uma visita abrupta de James Clapper. O diretor de inteligência interrompeu o briefing de segurança nacional que o presidente recebe todas as manhãs para dizer que não era líquido e certo que o ataque com arma química tivesse sido feito por forças sírias sob o comando de Assad. A mesma expressão, em inglês, tirada da basquete – slam dunk, ou enterrada – havia sido usada pelo diretor da CIA, George Tenet, para garantir a Bush que o Iraque de Saddam Hussein tinha armas químicas (o pretexto falsificado era essencial para atenuar o verdadeiro motivo da invasão, nascido de um delírio estratégico: promover mudanças de regime em todo o Oriente Médio para que as populações agradecidas se reconciliassem com os Estados Unidos e o terrorismo enfraquecesse).
Obama achou que estava sendo arrastado para um armadilha. Assad colocaria civis em torno dos lugares de armazenagem de armas químicas e mesmo que não o fizesse, os depósitos não podiam ser atacados, sob risco de liberar elementos nocivos. O presidente estava “cansado” de ver os Estados Unidos serem arrastados para conflitos em países muçulmanos e achava que a intervenção na Síria se transformaria no tipo de armadilha que havia sido e Vietnã. “Poderíamos causar danos a Assad, mas não eliminar as armas químicas apenas com mísseis. A perspectiva de que Assad sobrevivesse ao ataque e alegasse que havia enfrentado com sucesso os Estados Unidos, que os Estados Unidos haviam agido ilegalmente, na falta de uma autorização da ONU, faria com que ele saísse mais forte e não mais fraco”, disse Obama. Para espanto de todos os seus assessores, decidiu voltar atrás. “Eu fui ferrado”, disse a “um amigo” John Kerry, o morno secretário de Estado que de repente virou Churchill no caso do ataque cancelado à Líbia. Usou um verbo um pouco mais forte do que ferrar.
O episódio do bombardeio que foi sem nunca ter sido é o exemplo mais bem acabado do princípio declarado, em termos algo rudes, da política externa de Obama: “Nós não fazemos m….”. O presidente menciona, com razão, o que aconteceu na Líbia, onde Franca e Grã-Bretanha lideraram as ações militares, enquanto os Estados Unidos apoiavam na retaguarda, com autorização da ONU. “Mesmo assim, terminou num show de m….”, disse. No caso da Síria, ele conta ter falado pessoalmente com Vladimir Putin e, para evitar um ataque americano, a Rússia obrigou Assad a entregar seu arsenal químico, num programa conduzido por especialistas internacionais.
Para Obama, a cautela não leva a maior potência da história a uma paralisia perigosa para a estabilidade mundial nem o faz temer pela própria imagem. Ele garante que autorizaria mesmo um ataque ao Irã se não houvesse um acordo para interromper a corrida do país para a bomba nuclear. E porque se envolveu numa briga tão feia com Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel cuja reeleição o presidente tentou sabotar? Netanyahu “queria que Obama impedisse o Irã de ter capacidade de fazer a bomba, não apenas de ter a bomba”, escreve Goldberg.
Nas entrevistas, Obama também repete explicitamente o que já havia dito indiretamente: “Ele acreditou por muito tempo que Netanyahu poderia conseguir a solução dos dois estados que protegeria Israel como uma democracia de maioria judia, mas é medroso e politicamente paralisado.” Interessante como as projeções inconscientes podem operar. Depois de terminar o segundo grau nos Estados Unidos, Netanyahu entrou para a unidade de operações especiais do Exército israelense, participou de diversas operações atrás das linhas inimigas e levou um tiro no ombro durante a invasão de um avião da Sabena, sequestrado e levado para Israel (um fato menor diante da aura heróica do irmão dele, o único morto no resgate de Entebe). Com idade equivalente, Obama estava numa faculdade particular na Califórnia.
No decorrer das entrevistas, Obama também criticou Reccep Tayyp Erdogan, o presidente da Turquia que se torna cada vez mais declaradamente partidário de uma ditadura islâmica. Obama acha que ele se tornou “um fracasso autoritário, que se recusa a usar seu enorme exército para estabilizar a Síria”. A segunda parte também poderia ser aplicada a Obama, com a diferença, evidente, de que ele defende magistralmente seus pontos de vista. A história vai julgar se ele enfraqueceu os Estados Unidos, por causa do receio de provocar desastres maiores ainda, ou se o Oriente Médio não tem jeito mesmo e é melhor ficar fora dessa encrenca.