Como não sair da crise: Venezuela aponta para guerra civil
Policial galã convoca rebelião legítima, mas comandantes militares, que trocaram tráfico de droga por contrabando de comida, continuam na mamata

Tudo no mundo sempre pode piorar e a Venezuela é o exemplo mais atual disso. O lance mais recente do inferno surreal no qual o país afundou foi o desvio de um helicóptero da Polícia Científica para jogar granadas na sede do Tribunal Supremo de Justiça.
Na Venezuela, o tribunal superior se tornou símbolo do quem existe de mais repulsivo no regime legado pelo chavismo: uma instituição totalmente aparelhada, inclusive com criminosos, usada na tentativa frustrada de fechamento do Congresso. A oposição tem maioria parlamentar, sem nenhum resultado O dramático voo do helicóptero desviado de uma base aérea foi filmado, mostrando tiros e quatro granadas jogadas no Supremo, além do Ministério do Interior, justamente na hora que havia um almoço para 80 pessoas na cobertura do prédio – as excelências venezuelanas têm o que comer, ao contrário do resto do país.
Simultaneamente, circulou um vídeo em que Oscar Pérez, agente da Polícia Científica que parece uma versão venezuelana de James Bond, conclama os venezuelanos a exercer o direito legítimo de rebelião contra a tirania. Este recurso extremo consta da cláusula número 350 da constituição. O número aparece em cartazes nas marchas de protestos e na bandeira mostrada por Pérez no helicóptero, dizendo: “350. Liberdade”. O policial de olhos verdes é uma espécie de celebridade na Venezuela.
Em fotos de rede social, ele aparece mergulhando, empunhando um facão e atirando com fuzil. Nessa última cena, ao lado de uma ex-miss Universo, beldades frequentes na Venezuela, pelo menos até antes do mergulho no abismo.
ESTILO CUBANO
O vídeo de Pérez, com quatro policiais de farda e balaclava ao fundo, poderia parecer uma cena de filme de Woody Allen se não fosse a dignidade do texto. “Não temos tendências político-partidárias. Somos nacionalistas, patriotas e institucionalistas”, diz Pérez, apertando todos os botões que poderiam acionar policiais e militares a por Nicolás Maduro para correr e criar condições para instaurar algo parecido com a normalidade.
Seria um golpe militar considerado um golpe? Pelas esquerdas em geral, sem dúvida; enquanto todo o resto da humanidade consideraria um recurso aceitável diante da total destruição da economia e de qualquer coisa que pareça com um sistema democrático.
Os militares sairiam de campo depois de eleições? Ninguém sabe.
E quais a probabilidade de que realmente se revoltem contra Maduro, embora não necessariamente a favor do anti-chavismo? Ela, evidentemente, aumenta a cada dia que o país afunda mais, com a insanidade adicional da eleição de uma assembleia constituinte, um truque inventado por Maduro.
Agitação nos quartéis existe. Diz um dos panfletos em circulação: “A Constituinte vai acabar com as Forças Armadas Nacionais, substituindo-as por uma milícia ao estilo cubano. Os oficiais de carreira serão substituídos por sargentos e a logística militar estará inteiramente nas mãos de assessores cubanos”.
TRÁFICO FATIADO
A questão é que, na realidade, a “refundação” – palavra maldita – das Forças Armadas já aconteceu. Sob instruções de agentes do regime cubano, mas com particularidades locais. O controle do tráfico de drogas, por exemplo, foi fatiado entre os comandantes militares de acordo com as regiões do país sob sua jurisdição.
Depois que Maduro colocou as Forças Armadas para controlar a distribuição de comida, a situação, evidentemente, piorou. A situação na Venezuela é tão delirante que os militares passaram a ganhar dinheiro com a venda de alimentos subsidiados a preços infinitamente mais altos.
“Ultimamente, comida está sendo melhor negócio do que as drogas”, segundo o general da reserva Cliver Alcalá., numa entrevista ao jornal espanhol ABC. Ele é um autodenominado chavista dissidente que foi companheiro de Hugo Chávez e se rebelou contra Maduro.
Mas o próprio Alcalá diz que é inútil esperar que outros generais, da ativa, façam a mesma coisa. “O alto comando está muito à vontade com Maduro. Para que derrubar o presidente se ele os colocou no controle de áreas estratégicas da economia, como mineração e petróleo?”.
Nas palavras do próprio Maduro, o ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, tem desde julho de 2016 os seguintes poderes: “Todos os ministérios, todos os ministros, todas as instituições do estado estão a partir de agora totalmente subordinados ao comando nacional da Grande Missão Abastecimento Soberano e Seguro”.
O nome orwelliano não escapa à ironia dos venezuelanos. Muitos chamam a pasta do general Padrino de Ministério da Submissão e Entrega da Soberania.
Se determinados comandantes militares se rebelassem isoladamente, seguindo artigo 350, a situação poderia ficar pior ainda: um confronto armado entre alas contra e a favor do madurismo, envolvendo a população. Ou seja, guerra civil.
BOINA VERMELHA
Mas esperem. A situação atinge noves críticos com agravantes como a Milícia Nacional Bolivariana e os coletivos, grupos armados para defender o “socialismo do século 21”, mas que hoje atuam mais no ramo do “roubalismo”, incluindo sequestros e tráfico.
Controlam bairros inteiros na zona oeste de Caracas: centros comunitários, hospitais, escolas e comércio, num sistema territorialista parecido com o dos grupos de traficantes no Rio de Janeiro
Os nomes dos coletivos indicam sua origem: Boina Vermelha, Escudo da Revolução, Força Comunitária Ernesto Che Guevara e assim por diante. A maioria se originou de grupos armados de extrema-esquerda que agiam no fim dos anos 70. Ideologicamente, são da mesma família que as “organizações sociais” no Brasil.
Com a ascensão do chavismo, cresceram e se multiplicaram. Chegaram, na prática, ao poder, com armamento farto e treinamento em Cuba. Mas é importante ressaltar as diferenças importantes entre os dois países. Cuba é uma ilha, com população pequena e pobre, onde um grupo de revolucionários disciplinados, instruídos pelos métodos soviéticos, instituiu um sistema hierarquizado e altamente controlado.
Convencidos pela doutrinação ou intimidados pelo conformismo, os quadros do regime cubano não se desviam da linha. Até a divisão do butim tem que ter disciplina. O fuzilamento do general Arnaldo Ochoa, em 1989, mostrou os riscos de comportamentos desse tipo.
Em condições sociais diferentes, nadando no dinheiro do petróleo, sem uma hierarquia orgânica e num ambiente propício à criminalidade, venezuelanos armados, com farda ou sem farda, afundaram em desmandos e roubalheira.
MACARRÃO AO EXCREMENTO
Quem vai desarmar os coletivos? Quem vai desaparelhar as instituições? Quem vai confiar numa redemocratização eventualmente conduzida por comandantes militares doutrinados no roubo-socialismo?
O imperdível colunista Nelson Bocaranda assim define a atuação dos agentes do Estado venezuelanos: “Militares que agridem a população civil, jornalistas que fazem propaganda em vez de informar, funcionários acusados de pertencer a cartéis de droga, chanceleres que proferem insultos e ignoram a diplomacia, controladorias que não examinam com lupa os orçamentos, magistrados com antecedentes criminais, defensores de partidos e não do povo, instituições eleitorais que não fazem eleições e até um presidente cuja nacionalidade não está de todo definida”.
Na semana passada, o Washington Post publicou relatos de presos num depósito de alimentos saqueado, uma das muitas e cada vez mais violentas manifestações de protesto em que 77 pessoas já foram mortas.
Pelo menos 15 detidos relataram ter sido forçados a comer macarrão cru com excrementos. Os policiais colocavam pó das bombas de gás lacrimogêneo no nariz das vítimas para obrigá-las a abrir a boca.
De certa maneira, a imensa maioria dos venezuelanos está sendo forçada a comer a intragável dieta do macarrão à bolivarianismo.