Como a questão dos reféns enfraquece, divide e traumatiza Israel
A horrível morte de três reféns fuzilados por soldados israelenses e depoimentos de mulheres libertadas, com relatos de abuso sexual, minam o país

No campo de batalha, complicadíssimo por ser em áreas urbanas, as Forças de Defesa de Israel levam vantagem; na guerra psicológica, o Hamas tem um instrumento de pressão devastador: os mais de cem reféns que continuam em seu poder.
Famílias desesperadas que se voltam contra o governo e histórias traumatizantes, de abusos sexuais – como relatados diretamente por três jovens ainda mantidas em cativeiro a uma mulher de libertada na troca por presos palestinos – até os três reféns mortos mesmo acenando uma bandeira branca às forças que deveriam resgatá-los, aumentam a pressão a níveis insuportáveis.
“É uma dicotomia bizarra e paradoxal, mas parece que as FDI podem estar ganhando do Hamas no controle do território de Gaza, enquanto o grupo terrorista ganha na questão dos reféns”, avaliou o principal analista militar do Jerusalem Post, Yonah Jeremy Bob.
É como se o público estivesse esperando um milagre, como o resgate de 103 passageiros do avião sequestrado por radicais palestinos e alemães em 1976 e levado para Entebe, em Uganda, e não só isso não acontece, como a situação vai ficando pior. A mensagem escrita pelos reféns mortos por soldados israelenses com restos de comida num pano branco é devastadora: “Socorro. Três reféns”.
O vídeo com três reféns idosos, com barbas brancas que cresceram em dois meses e meio de cativeiro, acrescentou outro elemento de pressão.
<h3)Corpos violados
É claro que as famílias ficaram arrasadas – e parentes culpam o governo. As manifestações constantes vão ficando mais desesperadas, exigindo que as autoridades parem a guerra e troquem todos os presos palestinos – cerca de sete mil, aumentando à medida que chegam os capturados em Gaza, cerca de duzentos por dia – pelos reféns.
E é claro que o governo não pode fazer isso. Seria dar a vitória à organização que pretende varrer da face de Gaza, ameaçando o próprio futuro do país. É um dilema sem saída.
“Nós achávamos que Israel evitaria qualquer ação militar, que primeiro fosse garantir a nossa libertação”, contou a ex-refém Chen Goldstein-Almog. “Mas à medida em que os dias passavam, entendemos a complexidade da situação. A escalada dos ataques aéreos nos fez ter medo de que fôssemos sacrificados em troca de objetivos estratégicos superiores”.
Chen foi levada com os três filhos mais novos, depois de ver o marido e a filha mais velha fuzilados no ataque de 7 de outubro.
Ela passou um mês e meio num apartamento usado como cativeiro, debaixo de bombas, antes de ser levada para outro lugar, onde havia mais reféns. Foi lá que ouviu o relato direto de três mulheres jovens sobre como “sofreram abusos sexuais e tiveram seus corpos violados”. Um quarto caso foi relatado a ela, indiretamente.
Drogados e maracados
A ideia de que os reféns libertados saíram ilesos do seu tormento vai sendo destruída pela realidade. Alguns foram obrigados até a tomar remédios contra a ansiedade, da família do benzodiazepam, para parecerem bem quando soltos. No cativeiro, obrigavam crianças a tomar essas substâncias para controlar melhor o choro e o desespero. Uma menina pequena teve que tomar cetamina, o anestésico cujo uso matou o ator Matthew Perry, da série Friends.
“Nem uma única pessoa que voltou não tinha problemas físicos ou médicos”, disse o médico Itay Pessach, do hospital infantil que leva o nome dos brasileiros Edmond e Lily Safra, ambos falecidos. Todos os reféns perderam peso, incluindo as crianças. Houve o caso de dois meninos marcados com escapamento de motocicleta aquecido, para serem reconhecidos caso fugissem.
“Vimos marcas de algemas. Ouvimos e vimos evidência de abuso sexual numa parte significativa de pessoas que tratamos. Também ouvimos evidências, e isso é o pior, de abuso contra pessoas que continuam lá, tanto físico como sexual”. “Infelizmente, nós nos tornamos os maiores especialistas mundiais em reféns libertados”, acrescentou o médico.
Milagre de Entebe
Nos últimos dias, surgiram os primeiros indícios de que pode haver um segundo processo de troca de reféns por presos, mas tudo ainda está no ar.
“A liderança política e militar, com todos os seus erros quando o ataque foi desfechado, fez bem em alertar o país, desde o começo, que a guerra seria longa”, escreveu no Post o analista Herb Keinon. “E mesmo que intelectualmente o país tenha entendido isso, emocionalmente queria acreditar em outra coisa”.
Ou seja, num milagre parecido com o de Entebe, onde o único morto entre as forças especiais enviadas para o resgate foi o irmão do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, Yonathan.
Keinon também lembra da doutrina desenvolvida por David Ben Gurion, que foi o primeiro líder a ser chefe de governo de Israel, de que as guerras precisariam ser rápidas e fulminantes. Motivo: num país pequeno com um exército que depende altamente dos reservistas – ou seja, de cidadãos comuns -, a tolerância para grandes perdas é pouca.
Não é possível ser rápido e fulminante contra inimigos que operam em áreas urbanas, abrigados numa extensa rede de túneis. E ainda por cima, correndo contra o relógio das pressões internacionais. Mesmo os aliados mais próximos de Israel, como Alemanha e Reino Unido, estão pedindo um cessar-fogo “sustentável”.
Roleta russa
Ontem, o diretor do Mossad, David Barnea, a quem foi confiada a tarefa da negociação sobre trocas de reféns por presos, encontrou-se em Varsóvia com os dois interlocutores com quem tem se articulado, o diretor da CIA, Bill Burns, e o primeiro-ministro do Catar, Mohammed Bin Abdulrahman Al Thani.
Pode haver mais uma troca sendo esboçada. Mas uma coisa é garantida: o Hamas não abrirá mão de seu maior trunfo. Enquanto tiver um único refém em seu poder, Israel não ganha a guerra.
Tendo obtido um “troféu” muito maior do que esperava, a organização terrorista pode se permitir trocar e até eliminar reféns. Ao todo, 21 já foram mortos.
“É uma roleta russa”, disse Ruby Chen, pai de um refém de 19 anos. “Não aguentamos mais. A qualquer momento podemos ouvir a batida na porta”. As manifestações de protesto de famílias já provocaram até contra-manifestações: simpatizantes da ultradireita que acusam os parentes de politizar o drama e enfraquecer o país num momento vital.
Realmente, os moradores dos kibutz, a experiência coletivista que remonta à fundação de Israel, tendem a ser de oposição a Netanyahu e acham que a guerra deveria parar para recuperar os reféns, independentemente do que aconteça com o Hamas. É debaixo dessa pressão que o governo – e não só Netanyahu – tem que funcionar.