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Caminhoneiros, o papo de Fidel com Pinochet e outros casos

Por causa da greve dos transportadores, apareceram muitos especialistas nos acontecimentos que levaram ao golpe no Chile; cuidado com eles

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 30 jul 2020, 20h27 - Publicado em 28 Maio 2018, 07h42

Como as reformas, a história baseada no princípio do “já que” está cheia de armadilhas.

“Já que todo mundo acha que isso aconteceu, vamos repetir”, imaginam os especialistas em reprodução de narrativas distorcidas, uma categoria que proliferou com a greve dos caminhoneiros e os falsos paralelos entre a situação no Chile antes do golpe e a no Brasil atual.

Historiadores de verdade fazem trabalhos extraordinários, mas jornalistas têm o direito de colher fatos, declarações e, claro, versões, para dar uma resumidinha rápida e ajudar os leitores a formar suas opiniões.

Ou pelo menos se espantar com a diversidade dos acontecimentos no Chile, exatamente oposta ao reducionismo dominante.

A seguir, algumas dessas histórias.

Deixar o melhor para o final é uma boa tática, mas vamos fazer o contrário, com a garantia de que há outras reconstituções imperdíveis. A visita de 24 dias de Fidel Castro ao Chile em 1971 foi um dos muitos fatores que empurraram o país para o golpe.

Fidel fez vários e intermináveis discursos, sempre em torno do tema de que estava testemunhando “o fascismo em ação”.

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Como comandante da guarnição do Exército em Santiago, um certo general Augusto Pinochet o acompanhou em parte da visita e até ofereceu um jantar ao visitante.

“Era um homem alto que falava o dia inteiro. A língua não parava. Tinha uma capacidade selvagem de falar, só fazendo demagogia”, escreveu Pinochet em sua autobiografia.

Vicente García Huidobro, neto do poeta famoso, contou detalhes mais interessantes da conversa que entreouviu na cozinha da casa do general. Fidel e Pinochet começaram a falar de armas, com paixão de especialistas.

“Essa coisa é uma porcaria” dizia Fidel. “Essa não vale nada.”

A certa altura, Pinochet comentou as menções feitas ao “fascismo em ação”. Habitualmente fechadão, estava meio embalado: “Olha aqui, seu babaca, que história é essa de fascismo.”

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“Eu tenho na gaveta uma lista de 700, ou de 70 chilenos; mando prender todo mundo e, pronto, acabou o fascismo no Chile.”

2. Salvador Allende foi ficando cada vez mais radical e apaixonado pelo regime ao longo de sua trajetória.

Quando começou a apoiar a luta armada, Fidel ironizou: “Aconselho que compre um uniforme de guerrilheiro na Christian Dior’.” A história foi contada por Elizabeth Burgos, mulher de Régis Debray, o jornalista francês que foi para a guerrilha com Che Guevara na Bolívia.

Fidel também tinha acesso à intimidade da família depois que Beatriz, a filha de Allende que se suicidou na era pós-golpe, se casou com um figurão cubano.

A metralhadora com que Allende se suicidou no dia do golpe, no palácio de La Moneda, tinha a inscrição: “A Salvador, de seu companheiro em armas, Fidel Castro.”

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Mas a interminável visita de Fidel em 1971 foi inconveniente para o presidente chileno, desde o começo em situação precária.

Allende pediu a Carlos Altamirano, secretário-geral do Partido Socialista, que falasse com Fidel para abreviar a visita, segundo recuperou o site chileno The Clinic.

“Mas não fiz isso. Não é fácil dizer a uma personalidade e a um chefe de Estado do tamanho de Fidel ‘olha, já está bom, agora vai embora’”, recordou Altamirano, hoje com 95 anos.

3. Cada vez que Fidel arengava as massas de esquerda, a direita incentivava mulheres chilenas a sair batendo panela nas ruas – um dos vários problemas criados para Allende pela visita que não acabava nunca.

A maior manifestação de mulheres coincidiu com o discurso dele no Estádio Nacional.

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“O governo cometeu o erro político de atacá-las. A raiva que isso despertou desencadeou uma manifestação extraordinária”, recordou Jorge Martínez Rodríguez, líder da Câmara Central, organização de grandes e médias empresas.

Na reconstituição feita em 2003 pelo jornal El Mercúrio, todos os empresários envolvidos na reação a Allende coincidiram em dizer: “Nós não o derrubamos, ele caiu sozinho.”

Falar em envolvimento dos Estados Unidos é “complexo de inferioridade”, disse Orlando Saénz ao jornal. Na época, ele era líder da Sociedade de Fomento Fabril. “Não vamos nos diminuir e procurar mãos negras. No máximo, houve participações de entidades externas que simpatizavam com nossas causas.”

4. Luís Villarín, presidente da Confederação Nacional de Donos de Caminhões, tratado pela esquerda como o “verdugo de Allende” e perigoso agente da CIA, tinha exatamente dois caminhões.

A primeira greve dos caminhoneiros foi em protesto contra um plano do governo Allende de criar uma estatal para concentrar todos os meios de transporte de carga.

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Villarín foi preso em outubro de 1972 na sede da confederação, com mais três dirigentes.”Passamos dezessete dias numa cela de dois metros por dois, com uma latrina no meio”, recordou um deles, Jorge Álvarez Agüero. “Depois nos levaram para o corredor número 13, com dois assassinos.”

Saíram dali para uma reunião secreta com Allende. As reivindicações do caminheiros foram aceitas, num clima ameno.

“Allende mandou buscar uma garrafa de Chivas Regal. Quando terminados, eu disse: ‘Presidente, já que chegamos a um acordo, nos convide para um uisquezinho’. Ele respondeu que para vocês, só café”, contou Álvarez.

O problema era que o governo dizia uma coisa e fazia outra, segundo os empresários entrevistados. A estatização planejada para os transportes desencadeou a segunda greve. Começou em 25 de julho de 1973 e durou até o golpe de 11 de setembro.

5. Disse Vilarín ao El País em 1988 que o golpe foi obra do “povo do Chile”.

“Foram fundamentalmente as mulheres do Chile, que viram que não tinham comida em suas casas, que as panelas estavam vazias, que não tinha trabalho, que não havia ordem nem respeito pelos tribunais nem pelo Congresso Nacional. Não havia autoridade.”

6. A intervenção da CIA no Chile foi reconstituída pela imprensa americana, por investigações do Senado e, posteriormente, pela própria agência.

Um ano depois do golpe, o New York Times já dava a primeira reportagem, de Seymour Hersch. “Fontes de inteligência” diziam que “a maior parte dos mais de 8 milhões de dólares autorizados para atividades clandestinas no Chile foi usada em 1972 e 1973 para apoiar grevistas e trabalhadores” que eram contra Allende.

Mesmo em valores atualizados, não é uma soma fantástica, mas a maior potência da história não se mexe em vão. Os acontecimentos no Chile coincidiram com o que Henry Kissinger chamou de “outono das crises”.

A União Soviética parecia prever várias vitórias na guerra fria, movimentando peças no xadrez estratégico planetário. Técnicos e mísseis soviéticos estavam desembarcando no Egito e uma grande frota havia ancorado em Cienfuegos, criando suspeitas de que estava em Cuba para fazer uma base de submarinos às portas do território americano.

A CIA, como havia acontecido antes e aconteceria depois, havia errado feio, sustentando que Salvador Allende nunca seria eleito. Quando o Congresso chileno ratificou a vitória eleitoral parcial e debilitante, de 36,6% dos votos (um milhão, no total).

(Allende se comprometeu a fazer todas as reformas propostas com a aprovação do legislativo. Adivinhem o que aconteceu?)

No período de seis semanas entre o voto popular e a eleição no Congresso, Richard Nixon estava “furioso” numa reunião da cúpula dos serviços de inteligência, segundo anotou o vice-diretor da CIA, William Colby.

Acreditava, não sem razão, que o Chile seria usado por Cuba como polo de irradiação do comunismo.

“Sem consideração pelos riscos sem envolvimento da embaixada 10 milhões de dólares à disposição mais se necessário”, registrou telegraficamente Richard Helms, da Direção Nacional de Inteligência, a respeito do plano de ação. “Fazer a economia gritar.”

Agentes enviados especialmente para a missão começaram a entrar em contato com comandantes militares chilenos. Encontraram um general da reserva, Roberto Viaux. Mas concluíram que não era nada confiável. Pior, mesmo se conseguisse dar um golpe, “Enfrentaríamos a possibilidade nada agradável de um governo militar autocrático e nacionalista, não necessariamente pró-Estados Unidos”.

Viaux passou a ser um problema que explodiu espetacularmente quando um grupo de oficiais ligados a ele tentou sequestrar o maior garantidor de Salvador Allende, o general legalista René Schneider.

A ideia era levá-lo para a Argentina. Schneider reagiu à emboscada e foi morto. A eleição de Allende, com os desastres subsequentes, estava garantida.

7. Apesar da advertência sobre falsos paralelismos, o golpe militar no Chile foi certamente em 1964 ampliado: a esquerda revolucionária era muito mais forte do que no Brasil, a direita muito mais organizada e a violência foi muito maior.

Ao contrário de João Goulart, Allende partiu para o sacrifício. Numericamente e factualmente, a repressão alcançou níveis incomparáveis. Pinochet se perpetuou como ditador, sem o rodízio que aconteceu no Brasil, atropelando a hierarquia militar.

Uma versão com sinal contrário do desastre do sequestro do general Schneider aconteceu em 7 de setembro de 1986. Treinados e armados por Cuba, militantes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez fizeram um atentado contra Pinochet.

Cinco membros da escolta morreram, mas a Mercedes blindada salvou o general.

“Comandante, a emboscada a Pinochet fracassou”, contou um ministro a Fidel, que estava em visita à Iugoslávia. Segundo o escritor Norberto Fuentes, que recebeu posteriormente documentos e gravações para um livro que nunca escreveu, “Fidel era obcecado por matar Pinochet”.

Dois anos depois, em outubro de 1988, Pinochet foi derrotado no histórico plebiscito sobre sua permanência no poder.

“É claro que o ‘sim’ vai ganhar”, garantiu León Vilarín, o caminhoneiro já aposentado, tão certo do resultado positivo quanto Pinochet.

O “não” ganhou com quase 56% dos votos.

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