Boas novas: alguns tradicionalistas chegam até a elogiar o novo papa
O comportamento centrado e as primeiras manifestações de Leão XIV são destacados, embora os mais radicais já tenham partido para o ataque

O americano Robert Prevost está sendo analisado com cautela por gente ajuizada – inclusive por tradicionalistas que sentem o peso da formação católica e, no fundo, gostariam de gostar de papa. Em contrapartida, os que deixaram a ideologização de tudo tomar conta de todos os aspectos de sua vida, já colocaram Leão XIV na categoria que aparentemente inclui as fúrias infernais. “Globalista”, pronto e acabou.
Um dos mais persistentes defensores do tradicionalismo, o vaticanista italiano Aldo Maria Valli, sempre aberto às palavras extremistas do arcebispo excomungado Carlo Maria Viganò, expressão máxima do conservadorismo, pediu a seus correligionários que “não disparem contra Leão” e tenham cuidado para não cair no fanatismo.
Quem imaginaria ouvir isso dele? Talvez seja o primeiro milagre do novo papa.
Valli, no seu site Duc in altum, disse ter ouvido de um tradicionalista que o novo papa “falou em pontes, como Bergoglio”. Mas a palavra transcende personalidades. Valli fez umA lista de todas as coisas que gostou no novo papa, a começar pelos trajes tradicionais, usados apenas na sua primeira apresentação ao mundo, mas rejeitados pelo papa Francisco.
“Gostei que tenha se apresentado de mozzetta vermelha e estola. Gostei da sua emoção. Gostei que tenha preparado um texto escrito, sinal de respeito por todos nós e indicativo do fato que levou muito a sério a sua missão. Gostei do nome que escolheu. Gostei da saudação inicial, de acordo com a tradição católica. Gostei das contínuas referências a Jesus. Gostei da expressão suave. Gostei da bênção solene. Gostei da homilia da missa Pro Ecclesia diante dos cardeais, quando falou de si mesmo como um ‘fiel administrador’ do tesouro da fé”.
E ainda comentou: “Talvez eu seja sentimental, mas fiquei comovido”.
‘REFORMISTA PACIFICADOR’
Outro tradicionalista que circula na mesma esfera, o escritor italiano Massimo Viglione, acredita que as onze menções à palavra paz “não foram endereçadas somente ao nível internacional e político”, mas às próprias esferas internas da Igreja. Revelaram, assim, “uma certa vontade de pacificação interna, necessaríssima, depois da odiosa e tirânica condução bergogliana, feita de terror interno, de excomunhão, de divisões, de maus humores reprimidos durante doze anos”.
Viglione disse também que não convém ter ilusões e “sonhar com um papa tradicional”. Mas “poderia ter sido muito pior”. Leão XIV “será provavelmente um reformista pacificador, uma espécie de democrata-cristão do nosso tempo”.
Ao contrário dos italianos, Steve Bannon, o ex-assessor trumpista que age como o coordenador mundial do populismo de direita, foi muito mais agressivo. Tendo prognosticado a possível eleição de Prevost, ao contrário da quase unanimidade dos vaticanistas, ele afirmou que Leão XIV “é a pior escolha para os católicos MAGA” e será um “papa anti-Trump”.
“Foi um voto contra Trump dos globalistas que controlam a Cúria, é o papa que Bergoglio e sua claque queriam”, afirmou, com típico exagero.
FILHO ESPIRITUAL
Mas Bannon tem um público grande que, infelizmente, como acontece também do lado contrário, vê tudo por uma única lente. Nesse caso, a da imigração clandestina e como lidar com ela.
Outro influenciador dos trumpistas, Charlie Kirk, citado pelo site Politico, mencionou o histórico de votação de Prevost em candidatos republicanos. Também começou a circular um vídeo da época em que Leão era bispo no Peru, na qual qualifica a guerra da Ucrânia como “autêntica invasão imperialista” da Rússia.
Como em outros países, os católicos americanos não são um bloco homogêneo. Numerosas organizações ligadas à Igreja ajuda imigrantes clandestinos, mas na última eleição deram um sólido apoio de 59% a Donald Trump.
Todos os veículos antitrumpistas destacam a quantidade de católicos no governo Trump, nenhum deles certamente simpático ao falecido papa Francisco. Na lista, entre outros, constam o vice-presidente JD Vance, convertido quando já era adulto e identificado justamente com Santo Agostinho, de quem o novo papa se declarou filho espiritual; o secretário de Estado, Marco Rubio, o diretor da CIA, John Rattcliffe e a porta-voz Karolline Leavitt, que deixa a oposição agitada toda vez que aparece com uma cruz no pescoço.
A relação do papa com Trump será importante, inclusive porque é nas doações dos católicos americanos que a Igreja tem sua maior fonte de financiamento. O papa Francisco tinha um evidente viés antiamericano que distorcia em tudo seu relacionamento. É típico da tradição anticapitalista da Igreja e do viés populista argentino do falecido papa.
‘JÁ SOFREMOS MUITO’
Mas o novo traz uma biografia única, como americano de Chicago e cidadão peruano de Chiclayo – “só mudam algumas letras”, já disse. Pastor com experiência da poderosa máquina interna do Vaticano, onde Francisco o colocou para filtrar candidatos a bispo, além de especialista em direito canônico. Tenista amador que toma uma cervejinha, como mostram suas fotos no Brasil, e canta Feliz Navidad em espanhol sem o sotaque típico dos que têm o inglês como primeira língua.
E um agostiniano que estudou matemática, ou seja, um papa que sabe o que é um algoritmo. O fato de, logo de início, ter se referido aos “desafios da inteligência artificial” indica ter a formação científica tão importante para compreender as revoluções tecnológicas de nossa era. Sem contar que seu padroeiro antecipou, com os conhecimentos possíveis em sua época, visões da física moderna – inclusive as quânticas frases sobre o tempo ao se referir a Deus (“Se antes da criação do céu e da terra não havia tempo, para que perguntar o que fazíeis então? Não podia haver então, se não havia tempo”).
Nada como Santo Agostinho para nos tirar do “Ele é dos nossos” que se instalou depois da escolha do novo papa.
“Bem-vindo, Leão XIV. Oramos por você”, disse, excepcionalmente, o rabugento Aldo Maria Valli. “E, por favor, confirme-se na fé. Sem piadinhas. Já sofremos muito.”