Batalha da Hungria contra bandeira gay vai além de jogo da Eurocopa
O governo de Viktor Orbán tem o maior atrito com a direção da União Europeia por causa de lei que proíbe falar em homossexualidade nas escolas
Não teve bandeira do arco-íris na iluminação do estádio Allianz Arena, embora as cores do movimento LBGTI tenham pipocado por toda a Alemanha.
Também não teve vitória da Hungria, com grande torcida contra o time por causa da decisão da Uefa de não acatar o pedido do prefeito de Munique, Dieter Reiter, de iluminar o estádio com as listas multicoloridas.
Como explicação, a Uefa disse que não poderia agir movida por “uma decisão política”.
Apesar das antipatias despertadas, teve uma dose de razão: a iniciativa do prefeito foi feita em resposta a uma lei aprovada esmagadoramente – 157 votos a um – pelo Parlamento da Hungria na semana passada que proíbe falar sobre homossexualidade e questões de gênero nas escolas frequentadas por menores de 18 anos e em programas infantis de televisão.
O tema é, obviamente, incendiário, pois não existe consenso entre as diferentes camadas da sociedade sobre como deve ser tratado. Simplesmente ignorá-lo, abordá-lo de maneira neutra ou usar a influência da escola para promover a aceitação de diferentes comportamentos sexuais? Qual o limite entre combater o preconceito, atitude tão desejável e necessária, e o incentivo com selo oficial à experimentação sexual heterodoxa?
Os extratos mais conservadores ou apenas não antenados com comportamentos alternativos têm grande repúdio a que isso seja tratado na escola, por receio justamente de que a terceira opção seja a mais influente. É uma atitude refletida, inclusive, na última eleição no Brasil.
E é um debate no qual Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro que encarna como nenhum outro político em atividade o conservadorismo mais assumido e articulado, se jogou de cabeça, sabendo muito bem que criaria mais um – talvez o maior de todos – ponto de atrito com a União Europeia.
“Esta lei húngara é uma vergonha”, fulminou Ursula von der Leyen, a alemã que preside a União Europeia, acusando a Hungria de “violar os valores fundamentais da União Europeia: a dignidade humana, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos”. Ela também desencadeou o burocrático processo da instituição para tentar cancelar a lei, com apelos ao governo húngaro.
As duas partes têm pleno conhecimento de que isso não vai acontecer. A próxima etapa, como pediram 14 dos 27 países europeus, pode ser levar a Hungria ao Tribunal de Justiça da UE.
Parecer um guerreiro solitário que enfrenta potestades superiores para defender os valores tradicionais é um dos motivos da popularidade de Orbán. Na Assembleia Nacional, seu partido, o Fidesz, e um partido aliado têm 133 deputados do total de 199.
Orbán é primeiro-ministro desde 2010 e não parece minimamente ameaçado, apesar – ou por causa – das antipatias que acirra entre progressistas, dentro e fora da Hungria, e dos muitos atritos com a União Europeia, inclusive por interferir na composição do judiciário.
Os adversários mais inflamados do político húngaro dizem que ele gostaria de instaurar uma “ditadura putinesca”. Ele realmente cultiva uma relação especial com Vladimir Putin, embora muitos de seus discursos formidáveis se ancorem do espírito de resistência dos húngaros ao comunismo soviético.
Ao contrário de Putin, ele tem estofo intelectual sólido e conhece melhor a Europa Ocidental. Chegou a ganhar uma bolsa para estudar ciências políticas em Oxford – ironicamente, a bolsa foi dada pela Fundação Soros.
George Soros, o multibilionário nascido na Hungria e radicado nos Estados Unidos, se tornou o mais conhecido inimigo ideológico de Orbán.
A batalha da bandeira gay torna o político húngaro mais conhecido, talvez pelos motivos errados. Orbán iria assistir o jogo com a Alemanha, mas cancelou a viagem. Poupou-se de ver o empate que desclassificou a Hungria – e talvez de ser vaiado, dependendo dos humores da plebe.
A Hungria e a Polônia são hoje os dois países da União Europeia que mais assumem um papel combativo em relação às chamadas batalhas identitárias ou pautas sociais, insurgindo-se contra o casamento gay, a mudança oficial de gênero, o aborto, o progressivismo que grassa no mundo acadêmico e nas ONGs e a abertura de fronteiras para imigrantes de fora da Europa.
Ganharam a denominação de “democracias iliberais”. O nacionalismo sem nenhuma atenuante, fortemente alimentado pelos períodos de perda de autonomia no passado distante ou recente, é a coluna de sustentação dessa linha. É claro que isso entra diretamente em confronto com as tendências dominantes.
“A maior ameaça para a Europa não está nos que querem vir viver aqui, mas nas nossas próprias elites políticas, econômicas e intelectuais, obcecadas por transformar a Europa contra o próprio desejo dos povos europeus”, já disse Orbán.
“Os partidos no governo na Polônia e na Hungria buscam o que consideram uma ruptura mais autêntica com a miragem da transição de 1989”, escreveu no Guardian o historiador americano Nicholas Mulder, referindo-se ao período atribulado do pós-comunismo.
“O nacionalismo antiliberal na Europa oriental é mais do que uma explosão de paixões incontroláveis. Têm em comum a crença de que receberam uma missão histórica e que o fim do comunismo foi apenas o começo do trajeto para a libertação nacional. O fato de que estas ideias tenham sido moldadas durante a década de transição também sugere que a democracia liberal é um projeto propositivo – não apenas algo reativo, mas sim dotado de seus próprios objetivos ideológicos”.
Dá para perceber que o assunto vai muito além da iluminação com a bandeira gay num estádio. E que o conflito com a direção da União Europeia vai esquentar.