As decepções da direita com Trump: presidente quebra tabus tradicionais
Negociar com a Venezuela de Maduro e buscar um acordão com a Rússia são dois movimentos que vão contra princípios fundamentais

É o presidente dos Estados Unidos ou o do Brasil? Conversar com o governo de Nicolás Maduro e negociar um grande acordo com a Rússia, no qual a Ucrânia e Volodymyr Zelensky, pelo qual ambos os presidentes não têm a menor simpatia, não têm a menor participação, são iniciativas que estão deixando uma parte da direita desorientada (a esquerda antiamericana, atrasada como sempre, ainda não percebeu que pode ter um novo aliado em Trump).
“Hoje em Moscou estão bebendo vodka na garrafa”, disse John Bolton, que já foi considerado o mais imperialista dos imperialistas, quando vazaram os detalhes do que Donald Trump pretende para a Ucrânia – em princípio, já deu tudo o que a Rússia queria. Bolton é um desafeto figadal de Trump, de quem foi um conflituoso assessor de Segurança Nacional, mas acertou na comparação da vodka – metafórica, evidentemente, já que Vladimir Putin não bebe.
Os pontos mais controvertidos: a Ucrânia nunca vai entrar na Otan e tropas europeias que eventualmente supervisionem um acordo de paz não serão cobertas pelo Artigo 5 (ou seja, se fossem atacadas pelos russos, não teriam a garantia de um revide, inclusive nuclear em caso extremo, dos americanos). De qualquer maneira, o ministro das Relações Exteriores de Putin, Sergei Lavrov, já disse que a Rússia não aceitará tropas de paz de países da Otan. Bang, bang, ideia descartada.
Por que Trump, que se considera um expert em negociações, já deu tudo o que os russos queriam antes mesmo que começassem os primeiros contatos entre as delegações encabeçadas pelo inexperiente Marco Rubio, o novo secretário de Estado, e o escoladíssimo Lavrov? Terá o presidente americano alguma manobra estratégica escondida para arrancar concessões dos russos? Ou simplesmente vai enfiar o acordo que quiser goela abaixo dos ucranianos e deixará sua antipatia por Zelensky dominar tudo. Ontem, absurdamente, ele chamou o presidente do país invadido de “mau negociador que poderia ter resolvido tudo isso sem a perda de tanto território e de tantas vidas”. Aliás, “nem deveria ter começado isso”, acrescentou, numa completa inversão da realidade.
GARRAS DO URSO
A causa ucraniana sempre foi completamente endossada pela direita tradicional nos Estados Unidos (e pelo Partido Democrata, além da esquerda ou centro-esquerda europeia). Viam nela não apenas a defesa do princípio existencial do não uso da força para invadir países e anexar territórios, como uma oportunidade para cortar as garras do urso russo.
A campanha de descrédito de Zelensky e da Ucrânia em geral foi habilmente tecida por influenciadores de grande repercussão, como Tucker Carlson e similares. Conseguiram virar o jogo e apresentar os ucranianos como aproveitadores que estavam extorquindo o rico dinheirinho dos ingênuos americanos.
Deu incrivelmente certo. Senadores republicanos que viviam em Kiev oferecendo solidariedade eterna hoje estão intimidados. Não querem desagradar os trumpistas, embora vejam claramente como Trump e Vladimir Putin estão dividindo as esferas de influência, deixando a Ucrânia como mera espectadora.
Também causou choque a ida do enviado especial Richard Grenell à Venezuela para conseguir tirar das masmorras seis cidadãos americanos. A causa é justa, mas não deixou de ser um reconhecimento do regime de Maduro.
SEM PROTEÇÃO ESPECIAL
Da mesma forma, venezuelanos radicados nos Estados Unidos – que votaram na proporção de 92% em Trump – ficaram decepcionados com a deportação de compatriotas em situação ilegal, outro assunto negociado por Grenell. Trump retirou a proteção especial que permitia a 300 mil venezuelanos permanecer nos Estados Unidos, mesmo sem documentação, como refugiados de um sistema ditatorial de esquerda.
“É mais do que traição. Nós fomos usados”, disse à rádio pública a diretora de uma organização de apoio aos venezuelanos, Adelys Ferro.
Os cidadãos comuns que escaparam do inferno criado pelo chavismo acabaram sendo colocados na mesma categoria que criminosos perigosos como os do grupo Trem de Arágua. Por causa deles, venezuelano se transformou em sinônimo de bandido – uma injustiça com os honestos e trabalhadores.
Também causaram espanto cláusulas vazadas de uma proposta do governo Trump pela qual os ucranianos comprometeriam 50% dos ingressos da futura exploração de suas reservas de terras raras e outras riquezas minerais para pagar pela ajuda americana já recebida – na casa dos 175 bilhões de reais. Os comentaristas mais chocados disseram que o acordo seria mais duro do que o imposto, pelo Tratado de Versalhes, depois que a Alemanha perdeu a I Guerra Mundial.
Disse um diplomata americano, espantado com as condições draconianas: “Não sei se Trump realmente pensa que pode ter acesso a esses recursos ou se vai usar isso como desculpa para abandonar os ucranianos. Na verdade, temo que sejam as duas coisas”.
DNA HISTÓRICO
Ninguém sabe e o estupor dos líderes europeus diante das novas condições reflete isso. Quem imaginaria Donald Trump como um aliado objetivo do pensamento da esquerda mais atrasada, que criticava a Ucrânia como uma inimiga por puro vício no antiamericanismo.
Um acordo com a Rússia acabaria por eliminar as múltiplas sanções econômicas e restabelecer o fornecimento de gás do qual as economias da Europa Ocidental se tornaram dependentes. Nesse sentido, seria bom para os europeus, mesmo ao preço desonroso de abandonar a Ucrânia. O único perigo é que Putin se sinta incentivado a avançar mais, como está escrito no DNA histórico da Rússia.
“Trump não quer apenas reformatar as relações comerciais com todos os países da face da Terra”, escreveu na Spectator o analista Irwin Stelter. “Ele quer que o mundo mude suas políticas externas para se adequar ao fim da Pax Americana”.
É uma mudança de tirar o fôlego. Depois do choque inicial, vários porta-vozes do governo Trump disseram que os Estados Unidos não abandonarão aliados eternamente ameaçados pela Rússia, como os Países Bálticos e a Polônia.
A retomada de contatos diplomáticos entre Estados Unidos e Rússia acaba com o isolamento de Moscou. Será uma forma de minar a aproximação da Rússia com a China, pensando no grande panorama estratégico, e até de enfraquecer os Brics? Teria Trump maneiras de compensar, não de extorquir, a Ucrânia pela perda de cerca de 20% de seu território?
Não é só a direita tradicional que está desconcertada.