À sombra da Rússia, três pequenos países vivem com medo, mas não vacilam
Menores, mais vulneráveis e mais temerosos, Estônia, Letônia e Lituânia apoiam fervorosamente a Ucrânia, sabendo que podem ser os próximos
Em 1949, quando era um bebê de seis meses, a futura mãe da primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, foi incluída na lista de “elementos antissoviéticos” e despachada num trem de gado para a Sibéria, com sua própria mãe e sua avó.
O inominável castigo coletivo era a vingança de Stálin contra os três países bálticos, entre outros, por ousarem resistir a seus desígnios durante a II Guerra Mundial e propiciou o que é chamado de transferências populacionais em massa. A expressão técnica não retrata nem de longe o horror que foi arrancar populações inteiras, mandá-las para a Sibéria e trazer cidadãos russos para se instalar nos países devastados. Na Estônia, 70% dos degredados eram mulheres e menores de 16 anos.
Esse movimento produzido por forças tirânicas instalou as sementes de um problema que reverbera até hoje. Com apenas 1,3 milhão de habitantes, a Estônia tem 25% da população com origem russa, uma proporção comparável à da Letônia. Na Lituânia, são 10%.
Mesmo antes da invasão da Ucrânia, os três pequenos países às margens do Mar Báltico já viviam com medo das ambições imperiais de Vladimir Putin, que poderia interferir nos vizinhos infinitamente mais fracos a pretexto de “salvar” ou “proteger” a população de origem russa.
A bárbara guerra desfechada contra a Ucrânia só confirmou suas piores suspeitas. E aumentou a certeza de que a Rússia é uma ameaça real, imediata e existencial. Proporcionalmente ao PIB, Estônia, Letônia e Lituânia são os países que mais fornecem ajuda à resistência ucraniana (a Polônia, com vários séculos de ocupação russa na história, fica em quarto lugar).
Dentre estes países, a voz mais eloquente no momento é de Kaja Kallas, uma política de centro-direita cujo pai foi primeiro-ministro e que praticamente desenha para quem não consegue entender por que é inaceitável um hipotético acordo de paz que permitisse à Rússia manter suas conquistas territoriais na Ucrânia.
“Nós tivemos paz depois da II Guerra Mundial, mas as atrocidades contra nosso povo começaram ou continuaram nessa época”, disse ao New York Times. O olhar matador que ela disparou, numa reunião de líderes europeus, na direção de Emmanuel Macron, o presidente que insiste numa também hipotética paz que não “esmague” a Rússia, resume tacitamente suas convicções.
Ser a líder de uma nação que a maioria das pessoas tem dificuldade em localizar no mapa, com população comparável a Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro, com 300 quilômetros de fronteira com o maior país do mundo, sem nenhuma certeza de que os Estados Unidos e o resto da Otan se arriscariam a uma III Guerra Mundial para defendê-la, ajuda muito a primeira-ministra de 45 anos a manter o foco. Ela não diz “eu bem que avisei”, sobre os alertas feitos em relação a Putin antes da guerra, mas não para de repetir a mensagem.
“Quando as pessoas não sabem que você existe, não vão reparar quando você desaparecer”, declarou ao Spiegel sobre o espaço que os estonianos acreditam ter conquistado com o pioneirismo na digitalização, que é também uma estratégia nacional de sobrevivência no caso de uma invasão russa.
Num país que compartilha o famoso distanciamento nórdico, Kaja Kallas circula por qualquer ambiente sem suscitar aglomerações nem pedidos de selfies. Tem concorrência em matéria de linha dura nos vizinhos.
Rihard Kols, parlamentar da Letônia, ganhou a internet na semana passada, ao trovejar contra a participação de uma delegação russa numa reunião em Viena da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa.
“Se eu fosse uma testemunha e me perguntassem quem são os criminosos de guerra, eu apontaria direto para o pessoal na fileira do fundo”, disse o loiríssimo Kols.
“É uma desgraça que essa delegação esteja aqui”, protestou, encerrando o discurso com uma citação literal, e na língua original, do militar ucraniano que respondeu famosamente, na Ilha das Cobras, ao aviso do navio de guerra russo de que a minúscula guarnição deveria se render. “Navio de guerra russo, vá se danar”, disse ele – a expressão foi abrandada – e repetiu Rihard Kols em Viena.
As bálticos fazem coro, veementemente. A história ainda tem marcas em carne viva na maioria das famílias e museus da ocupação relembram o que aconteceu nos anos mais trágicos: invasão soviética em 1940, invasão nazista em 1941 e, em 1944, soviética de novo, selando os anos de chumbo que só seriam superados com a mais poética das revoluções de 1989 na Europa Oriental. Cantando hinos patrióticos e fazendo uma corrente humana com dois milhões de pessoas entre os três países, eles conquistaram a independência. É inimaginável que a percam.