A questão teológica que levou o papa a responder ao vice americano
Por causa do grande tema da imigração clandestina, até Santo Agostinho foi envolvido num debate quente de religião e política

Existe uma ordem hierárquica sobre quem devemos amar? Por incrível que pareça, esta é uma questão de natureza religiosa que levou o papa Francisco a dirigir uma carta aos bispos americanos respondendo, sem mencionar o nome, ao vice-presidente JD Vance.
Motivo: Vance, que se converteu ao catolicismo já adulto – obviamente da corrente mais tradicional, pois os progressistas provavelmente nem aceitam conversões –, mencionou a Ordo Amoris, um conceito desenvolvido no século IV por Santo Agostinho, o mais importante teólogo do cristianismo depois de São Paulo, motivo pelo qual é um venerado Doutor da Igreja.
Numa extrema simplificação do sofisticado pensamento de Agostinho, um afro-romano de uma região que fica hoje na Argélia, a Ordo Amoris estabelece que o amor – também entendido como caridade ou amor ao próximo – deve ser dirigido a Deus, à família, à comunidade e à sociedade, nessa ordem, Vance, que se converteu depois de estudar teologia e filosofia moral com um frei dominicano, usou o antigo conceito de Santo Agostinho, a quem escolheu como patrono, para justificar a necessidade de controlar a imigração clandestina como proteção à população americana.
O papa Francisco, já no ocaso dos 88 anos e agora hospitalizado, ficou mordido e resolveu responder indiretamente com uma carta aos bispos americanos. “O ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram suas próprias terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do meio ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e os coloca em estado de particular vulnerabilidade”.
Sobre a Ordo Amores, ele fincou desafiou a interpretação do vice-presidente: “O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que, pouco a pouco, se estende a outras pessoas e grupos”.
MURALHAS DO VATICANO
Moralmente, mesmo para quem não segue os princípios da Igreja, é uma questão complexa, com uma tensão permanente entre a motivação dos que buscam uma vida melhor e o direito dos americanos (ou europeus, a questão atinge todos os países ricos ocidentais) a não ter estrangeiros indesejados ou não legalizados que sobrecarregam seus serviços públicos inundados, sem contar aspectos mais minoritários como aumento de criminalidade e até de terrorismo.
Não deveria ser travada com paixões políticas ou argumentos infantis – mas o que não é tragado por isso nos tempos atuais?
O chefe da Polícia de Emigração, Tom Horman, um católico durão com cara de personagem de filme, esbravejou: o papa “quer nos atacar por protegermos nossas fronteiras? Ele tem um muro em volta do Vaticano, certo? O papa deveria cuidar dos problemas de sua própria Igreja”.
Dizer que o Vaticano, hoje do tamanho de um bairro pequeno, tem muralhas – e tem, remetendo a tempos muito antigos – é um argumento recorrente da direita populista sempre que autoridades da Igreja defendem a entrada irrestrita de estrangeiros nos Estados Unidos. É tolo, embora faça sucesso entre os trumpistas.
‘CRISTÃOS RADICAIS’
Vance pelo menos foi mais sofisticado. Na verdade, ele estudou Santo Agostinho e atribuiu sua conversão a obras como Cidade de Deus. “Foi a melhor crítica a nossa era moderna que jamais li. Uma sociedade totalmente orientada ao consumo e ao prazer, rejeitando o dever e a virtude”.
Curiosamente, coincide com um dos temas a que o papa sempre se refere.
Vance fez um caminho oposto ao que acontece geralmente nos Estados Unidos: era evangélico, embora sem consistência, por causa da infância e adolescência caóticas, com o grave vício de drogas da mãe, e se converteu ao catolicismo.
Muitos críticos estão dizendo que o segundo governo de Donald Trump foi tomado por “cristãos radicais”. Dão como exemplo Vance e o secretário da Defesa, Pete Hegseth, que aderiu a uma vertente evangélica chamada Reconstrução Cristã, com uma visão “profundamente conservadora da família, do papel das mulheres e de como religião e política interagem”.
RENASCIMENTO CONSERVADOR
Antes que fosse confirmado pelo Senado, Hegseth foi acusado de radicalismo de direita – e até suas tatuagens foram usadas como argumento, por incluir um lema das Cruzadas, “Deus vult”, ou assim quis Deus, e também uma enorme cruz de Jerusalém. Até a linda e assustadoramente desenvolta porta-voz de Donald Trump, Karoline Leavitt, sofreu críticas por usar um crucifixo no pescoço.
É incrível que assuntos dos primórdios da Igreja estejam sendo discutidos no âmbito político contemporâneo dos Estados Unidos. É sinal de um renascimento conservador em diversas correntes cristãs – um tema que também perpassa a esfera política e social do Brasil.
Quando todo o mundo intelectual já dava por acabado um assunto existencial como religião, muitos espantaram-se ao descobrir que não era exatamente assim. Muitos ainda se recusam a reconhecer isso e tratam os sentimentos religiosos com desprezo – desde que os envolvidos sejam cristãos, obviamente.
“O orgulho é a fonte de todas as fraquezas porque é a fonte de todos os vícios”, ensinou Santo Agostinho, um intelecto tão formidável que continua a projetar sua sombra até hoje, até, surpreendentemente, na política americana, levando um papa a debater com um vice-presidente. Vale a pena ouvir os argumentos das duas partes.