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A morte dos milionários: indícios, erros e suspeitas no naufrágio do iate

Comandante foi indiciado pelo naufrágio do “insubmergível” iate Bayesian, um intrigante e raro caso em que tantas pessoas ricas morreram

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 28 ago 2024, 10h28 - Publicado em 26 ago 2024, 06h35

Se o veleiro de luxo Bayesian, que naufragou no porto do idílico vilarejo siciliano de Porticello na tormentosa madrugada do dia 12, fosse um país, a renda per capita das 22 pessoas a bordo passaria dos 30 milhões de dólares.

O dono do veleiro, o descendente de irlandeses Mike Lynch, um gênio nascido na pobreza que se transformou em magnata da alta tecnologia no Reino Unido, tinha a fortuna que pesava mais: 650 milhões de dólares. Tinha também o melhor motivo para festejar, com a mulher (resgatada com vida) e a filha de 18 anos (a última a ser tirada do iate no fundo do mar) e mais nove convidados, entre um amigo como Jonathan Bloomer, presidente do Morgan Stanley International (fortuna de 40 milhões) e o advogado americano Christopher Morvillo (oito milhões).

Lynch havia sido absolvido de um processo por fraude nos Estados Unidos, no qual a Hewlett Packard o acusava de falsificar os lucros da empresa de software Autonomy, vendida por onze bilhões de dólares. Admirado internacionalmente como fera da matemática e da física, Lynch dizia que a multinacional não entendia as complexidades de seu sistema de dados.

O processo correu na justiça americana e na britânica e durou doze anos, dos quais um Lynch passou em prisão domiciliar depois de ser extraditado para os Estados Unidos. Unanimemente considerado um homem simples, gentil e magnânimo, ele poderia passar o resto de sua vida na cadeia se pegasse a pena máxima de 25 anos.

Uma das enormes ironias da história é que, absolvido, sua vida foi notavelmente encurtada pelo acidente provocado por uma tromba d’água. Tinha 59 anos. E não foi só ele vitimado subitamente. Seu sócio, Stephen Chamberlain, executivo financeiro de seus negócios, morreu também na segunda-feira passada por causa de um atropelamento no interior da Inglaterra, apenas dois dias antes do naufrágio do Bayesian.

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Para aumentar a estranha sensação de que a fatalidade rondava o ar, Chris Morvillo comemorou a vitória no processo com um e-mail no qual agradecia a mulher, a designer de joias Neda Nassiri, que também morreu no naufrágio, e terminava com uma frase estranha para as circunstâncias e a linguagem habitual de um advogado comercial: “E eles foram felizes para sempre”.

TEORIA DA PROBABILIDADE

O barco de 52 metros e interior de luxo e bom gosto, sem nada das “torneiras de ouro” dos iates de xeques do petróleo ou bilionários russos, tinha sido rebatizado quando Lynch o comprou. O nome era uma homenagem ao teorema de Bayes, usado na teoria da probabilidade, a especialidade de Lynch. Remete ao matemático inglês Thomas Bayes e o enunciado achado em seus papéis depois que morreu, em 1761. Uma das aplicações do teorema é a inferência bayesiana, um dos pilares da teoria da probabilidade. Em termos resumidos, ele expressa a probabilidade condicional de um evento aleatório.

É claro que muitos especialistas estabeleceram uma relação entre o teorema que nomeava o iate e a tromba d’água que o fez naufragar. Há cenas de uma câmera de segurança mostrando como o mastro iluminado de 72 metros, quase duas vezes e meia a altura do Cristo Redentor, se apaga de repente e o barco logo aderna para o lado direito, naufragando em sessenta segundos.

Angela Bacares, a mulher de Lynch, contou que ela e o marido acordaram com o primeiro chacoalhão do iate, mas só ela subiu ao convés para ver o que estava acontecendo. Por causa disso, foi lançada ao mar e conseguiu pegar o barco salva-vidas auto-inflável.

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Foi assim também que se salvou a protagonista da história mais dramática, Charlotte Golunski, que conseguiu recuperar a filhinha Sophia, de um ano, arrancada de seus braços por dois segundos no mar borrascoso. O companheiro dela, James Emsley, executivo do banco de investimentos de riscos Invoke Capital, uma das propriedades de Mike Lynch, escapou de forma separada.

ESCOTILHAS ABERTAS

Das 22 pessoas a bordo, quinze se salvaram, inclusive nove dos dez tripulantes – a exceção foi o chefe de cozinha Recaldo Thomas. Agora, o comandante, James Cutfield, da Nova Zelândia, foi indiciado no processo aberto por múltiplos homicídios culposos e naufrágio de embarcação. Em 2017, depois de esgotar todos os recursos, Francesco Schettino, o infame comandante do Costa Concordia, acidentado em condições bem diferentes, começou a cumprir uma pena de dezesseis anos de prisão

Giovanni Costantino, fundador e CEO do estaleiro italiano que construiu o sofisticado veleiro, acha que não foi por acaso. Também acha que a tromba d’água não foi um “evento aleatório”.

Ao contrário, disse, a tempestade estava prevista pela meteorologia, motivo pelo qual nenhum pescador siciliano da região havia saído para o mar.

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A tripulação se salvou porque saiu dos camarotes, segundo Costantino, mas cometeu uma série de erros, como deixar abertas escotilhas e portas que funcionavam como comportas, afetando a estanqueidade do barco. Ele também considera um erro ter deixado o veleiro fundeado quando deveria ter levantado âncora, acionado a quilha retrátil e ligado os motores – procedimentos feitos por um veleiro que estava ao lado do Bayesian e que escapou da tempestade, resgatando alguns sobreviventes do iate fatídico.

Costantino disse que a tripulação deveria ter acordado os passageiros, tirando-os dos camarotes e reunindo-os no nível superior, vestidos com coletes salva-vidas enquanto durasse a tempestade. Cinco corpos foram encontrados na mesma cabine, o que significa que acordaram e ainda tentaram ir para o lado oposto ao qual o iate adernava. Hannah estava sozinha em seu camarote.

CONTO GÓTICO

Teria havido tempo para fazer todas as manobras de salvamento?

Como toda obra de engenharia, o Bayesian foi projetado para sobreviver a dezenas de vezes o impacto de fenômenos violentos, daí ser considerado “insubmergível” – um arrepiante paralelo com o Titanic, justamente o navio em que muitos ricos da época morreram.

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Mas os procedimentos corretos tinham que ser seguidos e as pesadíssimas acusações de Costantino serão incorporadas à investigação de especialistas italianos e britânicos.

O Baysian está totalmente preservado, virado a estibordo, no fundo do mar, a cinquenta metros de profundidade.

A história de seu naufrágio e das incríveis coincidências que o antecederam já foi comparada a um conto gótico, cheio de fatos suspeitos e mistérios obscuros que contrastam com a esplendorosa luminosidade do sul da Itália.

Sem falar nas teorias conspiracionistas: aparentemente, metade da internet tem certeza que Lynch e o sócio Stephen Chamberlain foram vítimas de algum plano sinistro. O fato de que o magnata tinha contratado muitos profissionais saídos do serviço secreto britânico, o M5, para sua empresa de segurança cibernética, Darktrace, alimenta ainda mais as suspeitas. Lynch havia cooperado espontaneamente com o MI5 para ajudar o órgão de segurança na tarefa mais importante para combater o terrorismo e outras ameaças, a coleta de dados em quantidades que só os especialistas entendem.

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CAPRICHOS OLÍMPICOS

Tornados e trombas d’água no Mediterrâneo são extensamente descritos em obras de autores da Roma antiga, todos referindo os antecessores gregos, inclusive Aristóteles, o patrono da meteorologia com sua obra precursora.

“Às vezes uma coluna, por assim dizer, é mandada do céu para o mar, em torno da qual fervem as águas, rasgadas por ventos fortes, e os barcos surpreendidos nessa tormenta correm grande risco”, escreveu Lucrécio em De Rerum Natura, a Natureza das Coisas, no primeiro século antes da era cristã.

Filósofos da antiguidade como Lucrécio procuravam causas naturais para os fenômenos da natureza, não explicações baseadas nos caprichos dos deuses olímpicos. Mas é difícil não pensar nos velhos arquétipos sobre o destino num caso como o do naufrágio do barco dos milionários.

Nele, além da absolvição de Mike Lynch, a família comemorava a aprovação de Hannah para cursar literatura inglesa em Harvard, depois de acertar 100% das questões do teste de avaliação equivalente ao Enem.

“É bizarro quando se ganha uma segunda vida”, disse Mike Lynch numa entrevista depois da absolvição. “A pergunta é: o que você quer fazer com ela?”.

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