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A mentira das ‘mulheres no passaporte’ introduz política no boxe olímpico

'Guerra cultural' e forte reação da opinião pública contra portadores de cromossomas XY que esmurram mulheres biológicas no ringue

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 3 ago 2024, 12h14 - Publicado em 3 ago 2024, 08h37

Não existe esporte mais regulamentado do que o boxe, por motivos óbvios: grandes diferenças físicas podem não apenas produzir derrotas ou vitórias, mas danos permanentes e até a morte. Daí a forte reação contra a tentativa de responsáveis pelo boxe olímpico de acusar quem se revoltou ao ver esportistas como Imane Khelif, da Argélia, e Lin Yu-Ting, de Taiwan, baterem em adversárias até arrancar lágrimas.

Inacreditavelmente, em vez de defender a igualdade de condições, o maior pressuposto do esporte, Mark Adams, porta-voz do Comitê Olímpico Internacional, não apenas se colocou ao lado das ganhadoras como “mulheres no passaporte” como as colocou na condição de vítimas de uma “caça às bruxas”. E ainda falou em guerra cultural e desinformação, politizando uma questão que virou o foco das Olimpíadas. Até Donald Trump entrou na história, por perguntas de jornalistas.

O ex-presidente americano falou muito cautelosamente, para seus padrões, que não “quer discriminar ninguém, mas proteger os direitos das atletas a competir em termos iguais”. O que há de errado nisso?

Para aumentar o clima de politização, a Hungria pediu uma reunião urgente do Comitê Olímpico para discutir a luta de hoje entre Imane Khelif e Anna Luca Hámori, que postou uma imagem de uma lutadora inocente diante de uma figura demoníaca, um golpe muito errado.

Obviamente, Khelif e Lin podem se considerar mulheres, reivindicar pronomes femininos e viver como tal, se quiserem, mas como portadoras de cromossomas XY têm vantagens injustas sobre mulheres biológicas em matéria de porte, ossatura, sistema respiratório e musculatura.

‘DIREITOS DOS HOMENS’

O boxe tem dezessete ou dezoito categorias de peso – varia segundo a instituição reguladora. A diferença é de pouco mais de um quilo entre, por exemplo, a categoria peso mosca ligeiro (até 48,99 quilos) e o peso mosca (até 50,80 quilos).

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O boxe era chamado, quando foi codificado pelo marquês de Queensberry, no século XIX, de esporte dos cavalheiros justamente por regras como não permitir golpes abaixo da linha da cintura ou bater num adversário no chão (nas regras originais, também se estabelecia que os boxeadores não podiam usar pregos ou cravos nas sapatilhas).

O esporte era ensinado nas escolas da elite britânica, embora, como sempre, os lutadores na maioria viessem do povão. A frase mais definitiva sobre o espírito povão reinante no esporte foi dita por Mike Tyson: “Todo mundo tem um plano até que leva um murro na boca”.

Mas esportistas masculinizadas batendo em mulheres talvez fosse um pouco demais até para ele.

A reportagem do jornal Daily Mail sobre a derrota da italiana Angela Carini, uma mulher bonita e curvilínea, para Imane Khalif teve mais de 7,2 mil comentários. Muitos diziam como foi duro assistir a italiana sendo esmurrada. Alguns jornais fecharam o espaço para comentários, um sinal de que não conseguem, como gostariam, controlar as reações dos leitores.

A escritora JK Rowling postou uma imagem das duas lutadoras e o comentário: “Poderia alguma foto resumir melhor o novo movimento pelos direitos dos homens?”.

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CRITÉRIOS VARIÁVEIS

Imane Khelif na verdade é um caso raríssimo de pessoa intersexo, com características misturadas de ambos os sexos, e merece toda compaixão pelas dificuldades que encontrou durante a infância, na Argélia.

Isso a qualifica como mulher numa luta de boxe?

Qualquer pessoa que estiver andando numa rua e deparar com a cena de um menino mais forte batendo num mais fraco vai condenar e, se puder, intervir.

O assunto, por motivos óbvios, deve ser tratado com cuidado. Como tem apenas poucos anos desde que homens biológicos que se declaram trans começaram a competir com mulheres em várias categorias esportivas, os critérios das diferentes organizações reguladoras ainda variam.

Ganhou destaque com a história de Lia Thomas e as arrasadoras derrotas que, com seu físico masculino e quase 1,90 metro de altura, infligiu a nadadoras na categoria universitária nos Estados Unidos. Thomas foi desqualificada pela World Acquatics, a antiga Federação Internacional de Natação, para competir nas Olimpíadas, com base num estudo que relatou as vantagens de seu corpo, já tendo passado da puberdade como homem, em matéria força, velocidade, potência e capacidade pulmonar.

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Acusar de transfobia quem não aceita a desigualdade de condições é uma forma de intimidar os que acham injusto esse tipo de competição.

‘ATIRAR À PRIMEIRA VISTA’

Para quem não aceita esse tipo de intimidação, e também para quem acha honestamente que isso é transfobia, vale revisitar a história do marquês de Queensberry, o aristocrata John Sholto Douglas, em todas as suas camadas de complexidade.

Ele era o pai de Alfred Douglas, o jovem incrivelmente belo e talentoso que viveu uma paixão vulcânica com Oscar Wilde. A relação entre pai e filho era de total hostilidade. “Com meus próprios olhos, vi você no mais desprezível e repugnante relacionamento”, escreveu ele ao filho numa carta em que também dizia que teria justificativas para “atirar nele à primeira vista” caso um processo por sodomia contra Wilde fosse verdadeiro.

“Que homenzinho engraçado é você”, telegrafou de volta Alfred, conhecido pelo apelido de Bosie.

Foi Oscar Wilde, com a audácia que uma inteligência muito superior inspira, quem processou o pai de seu amante por calúnia, por chamá-lo de sodomita, indo contra o conselho de todos os seus amigos. Desencadeou-se assim a condenação à prisão (a defesa do marquês apresentou cartas de amor encontradas em roupas do escritor dadas por Bosie a garotos de programa) e a derrocada que o levaria à morte, na desgraça, em Paris.

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Bosie acabou se casando com uma poetisa bissexual, converteu-se ao catolicismo (o verdadeiro vício inglês) e rejeitou o passado. Depois, separou-se da mulher, reatou e voltou a se separar. Viveram em casas próximas até a morte.

É impossível não ficar fascinado com todos os envolvidos, com seus sentimentos tempestuosos e suas fraquezas, e as obras de arte que deixaram. Para não falar nas regras do marquês codificando o boxe.

‘CIENTIFICAMENTE NÃO É HOMEM’

É bom conhecer histórias assim, nada maniqueístas, para tentar entender as complexidades envolvendo sexo, gênero, preferências sexuais, amor, paixão, arte, conflitos familiares e, no final de tudo, humanidade.

A mesma humanidade com que todos merecem ser tratados, incluindo Imane Kherif e Angela Carini, sem prejuízo do clamor por justiça.

Angela teve a elegância de pedir desculpas por não cumprimentar Imane ao final da luta da qual saiu em prantos. Foi uma boa iniciativa num ambiente em que a polarização política passou a contaminar o esporte.

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“Houve uma certa confusão de que de alguma forma é um homem lutando contra uma mulher. Não é o caso, cientificamente”, disse o porta-voz do comitê olímpico, um jornalista inglês que é amigo de infância do novo primeiro-ministro britânico, o trabalhista Keir Starmer.

FALSAS DESCULPAS

Mentira: dá para contestar ou pelo menos discutir a ciência envolvida pois as duas lutadoras já haviam sido barradas num campeonato internacional. A força de um murro de alguém com cromossomas XY é 2,6 vezes maior do que a de uma mulher biológica.

Imane Kherif pode ser vencida por uma mulher? Claro que sim. Não é só a força que conta.

Mas não é possível ignorar outro caso em que somos instados a desver os que os nossos olhos estão vendo.

Depois das cenas da cerimônia de abertura dos jogos, em que drag queens fizeram zombarias adequadas para cabarés, com um público pagante consciente do que iria ver, não uma plateia global diante da televisão, alguns dos responsáveis apresentaram sarcásticos pedidos de desculpas a “quem se sentiu ofendido” (ah, esses católicos reacionários e obscurantistas…).

Agora, veio essa nova forma de chamar o público de pouco inteligente e tacanho, quando não transfóbico. Não é uma imagem boa para o Comitê Olímpico ou para a França.

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