A história recente de manifestos e cartas abertas em eleições polarizadas
Todo mundo concorda que intelectuais e artistas influenciam relativamente poucos, mas ninguém resiste a ver o que eles estão dizendo
Hillary Clinton estava eleita no começo de novembro de 2016. Tinha até escolhido o gabinete e escrito o discurso da vitória (rememorou-o recentemente, aos prantos). Como ela poderia não ganhar se tinha só pesquisas favoráveis e o apoio de “todo mundo” – incluindo, maciçamente, as personalidades mais influentes das esferas acadêmica, artística, jornalística e política?
Um único, quase clandestino, foco de opinião contrária circulava sob o pseudônimo de Publius Decius Mus, nome de um combativo cônsul da época de Roma antiga, na revista literária do Claremont Institute, um centro de estudos de tendência conservadora, identificado com o pensamento do filósofico de Leo Strauss.
É improvável que povaréu que planejava votar em Donald Trump, sequer tivesse conhecimento de uma publicação tão obscura.
Mas foi nela que saiu publicado o artigo mais comentado da época. Ainda sob o pseudônimo latino, Michael Anton, um intelectual ligado ao Claremont, publicou um artigo comparando a eleição onde Hillary e Trump se confrontavam ao voo 93 da United, o único entre os aviões sequestrados no Onze de Setembro em que os passageiros, já sabendo o que tinha acontecido com os outros, combinaram invadir a cabine. Estavam conscientes que, mesmo se dominassem o terrorista no comando, não teriam como pilotar o Boeing. Mas escolheram deliberadamente morrer lutando. O avião que devia ser jogado contra o Capitólio, a sede do Congresso americano, caiu numa região agrícola da Pensilvânia.
O argumento de Anton: o falastrão e destemperado Trump, com todos seus conhecidos defeitos, pelo menos dava uma chance aos Estados Unidos. Com Hillary, seria garantia de ladeira abaixo. O que estava em jogo era nada menos do que o futuro do grande projeto americano.
“Ter um governo Hillary Clinton é fazer roleta russa com uma semiautomática. Com Trump, você pelo menos pode girar o cilindro e tentar a sorte”.
O artigo foi recebido com ojeriza no mundo acadêmico e entre comentaristas da imprensa, em especial entre os meios conservadores que já haviam passado por cima de suas convicções e se mostravam “fanaticamente anti-Trump”.
Anton persistiu na mesma linha, mesmo depois de ser identificado como o autor (o que aconteceu com ele, está no final desse post).
Para piorar, um mês depois da sua publicação, apareceu a bala de prata com que os democratas contavam para eliminar Trump de vez, depois de vasculharem toda sua movimentada vida no show business. Era o vídeo de uma conversa registrada antes de começar um programa de televisão no qual ele falava que chegava logo beijando mulheres bonitas. “Se você é famoso, elas deixavam fazer isso. Você pode fazer o que quiser, agarrá-las pela ****”.
O teor repugnante, embora dito em particular, revoltou conservadores e chegou a ser considerado a gota d’água que entornaria o barco Trump.
Depois da sua vitória, também ficou famosa uma definição dada, antes da surpresa nas urnas, por Salena Zito, uma das raras vozes equilibradas de direita na imprensa americana: “A imprensa o leva ao pé da letra, mas não a sério. Os que o apoiam o levam a sério, mas não ao pé da letra”.
Eleições polarizadas, com uma parte do eleitorado que não só odeia a outra, mas acha que não mereceria existir, e vice-versa, provocam artigos brilhantes e manifestos e cartas abertas que ninguém resiste a ler – e contra-argumentar.
Se fossem tirados os nomes de Emmanuel Macron e Marine Le Pen, que disputaram o segundo turno na França em abril, e substituído pelos candidatos brasileiros, fariam o mesmo sentido os manifestos de celebridades francesas.
Quase 500 atores, humoristas e outros assinaram uma carta aberta de apoio a Macron, apesar das convicções esquerdistas que reinam no meio artístico.
“Não temos hoje nenhuma dúvida, nenhuma hesitação, nenhum tremor. Não colocamos a democracia no mesmo plano que o populismo”, dizia o manifesto.
O mais famoso dos intelectuais franceses, Bernard-Henri Lévy, com sua vocação natural para o espetáculo, escreveu “num trem no meio da noite, carregado de refugiados, no coração da Ucrânia martirizada”, que Macron não poderia deixar de receber “nem um único voto”.
Todo mundo sabe que Marine Le Pen perdeu, embora com mais votos (pelo sistema presidencialista) do que Giorgia Meloni, a primeira-ministra da Itália. Moroni provocou exatamente o mesmo tipo de rejeição. Mesmo renegada, a origem no neofascismo de ambas é, por motivos óbvios, o motivo mais invocado.
“Que argumentos devem ser usados contra a direita?”, escreveu o filósofo italiano Sergio Labate. “Segundo muitos, evocar a herança do fascismo seria contraproducente. Seria melhor normalizar Giorgia Meloni. Na verdade, o tema do fascismo continua a ser uma questão séria: qual é o limite a partir do qual uma democracia liberal se torna iliberal?”.
No seu explosivo artigo, Michael Anton, conclamou os conservadores, seu verdadeiro alvo, a considerar que “só três questões importam”.
“Primeiro, qual o tamanho das coisas ruins. Segundo, o que fazer nesse momento. Terceiro, o que fazer a longo prazo”.
O interessante é que as questões podem ser aplicadas por qualquer campo ideológico.
Anton, um refinado intelectual que escreveu um livro sobre moda masculina parodiando o estilo de seu principal objeto de estudo, Maquiavel, chegou a ser nomeado para um cargo importante no Conselho de Segurança Nacional depois da eleição de Trump. Não durou muito, claro. Fato raro: saiu sem detonar o ex-presidente, famoso, ou infame, por romper praticamente com todas as pessoas que o apoiaram em algum momento.
A política exige couro grosso, estômago resistente e flexibilidade com o conceito de traição. “A política não tem relação com a moral”, é uma das máximas de Maquiavel.
Quem assina cartas abertas costuma acreditar que está no plano moral superior, combatendo um inimigo desprezível. É só esperar para ver quanto tempo vai demorar até que se decepcionem.