
A esquerda deveria estar comemorando: Donald Trump vem traçando uma nova doutrina em matéria de política externa e uma boa parte dela é crítica do intervencionismo americano — exatamente o aspecto mais malhado pelos obcecados com os imperialistas maus. Trump, ao contrário, quer ser um imperialista bonzinho, que não dá lições de moral aos parceiros bem colocados nem exige que se moldem pelos princípios vigentes nas democracias ocidentais. No discurso mais importante que fez sobre o assunto, na Arábia Saudita, ele mencionou os neoconservadores que orbitavam em torno de George Bush filho. Para justificar a invasão do Iraque, essa equipe desenvolveu a teoria de que, com a queda de Saddam Hussein, a implantação de um regime democrático no país iria se irradiar pelo Oriente Médio, criando sistemas virtuosos onde o terrorismo não teria mais apelo. Uma beleza na teoria, uma desgraça na prática.
Alguns atribuíram a doutrina Bush à influência de ex-trotskistasconvertidos ao conservadorismo, mas ainda moldados na ideia de revoluções permanentes e mudanças sistêmicas. “Destruíram mais do que construíram”, foi o veredicto de Trump, ao interferirem “em sociedades complexas que não compreendiam” — exatamente a acusação de muitos pensadores, e nem precisam ser de esquerda, sobre as intervenções americanas, desde o Vietnã até o Iraque. Trump, ao contrário, impressionado com a incrível riqueza das monarquias do Golfo, empregada de forma a favorecer seus cidadãos, mas sem nada de arcabouços democráticos, propôs uma espécie de doutrina da prosperidade: cada um atua segundo seus próprios interesses e — aí uma importante diferença — na sua, observados certos parâmetros. “Meu trabalho é defender os Estados Unidos e promover o interesse fundamental da estabilidade, da prosperidade e da paz”, especificou Trump. “Se Bush queria disseminar a liberdade, Trump quer disseminar arranha-céus reluzentes”, resumiu Rich Lowry, diretor de redação de um dos pilares do conservadorismo, a revista National Review.
“O fim do intervencionismo é um processo de alta complexidade — nenhuma potência pretende isenção”
O fim do intervencionismo é um processo de alta complexidade — nenhuma grande potência pode pretender a total isenção. Mas é interessante lembrar que a China conquistou adeptos com a proposta de financiar grandes projetos e não passar os “sermões” dos americanos. Só para lembrar: as exigências de adesão a fundamentos dos direitos humanos partem do Congresso, e não do Executivo, e foram muito importantes para países em transição democrática. Mas um presidente que mude de direção tem, é claro, uma influência enorme. Essa visão mais pragmática também está incorporada desde sempre à política externa americana, tendo tido seu ápice com o genial Henry Kissinger, em contraposição à corrente idealista.
Todos os grandes países têm as mesmas pulsões divergentes, e o correto, ou menos errado, é que haja um equilíbrio entre elas. Os pequenos, ou apequenados, têm dirigentes que vão fazer firulas para ditadores sem que nenhum interesse vital assim o exija, falam asneiras, pisoteiam a história e cortejam autocratas. Poderíamos estar falando de Donald Trump, com suas declarações de admiração pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman, ou de… bem, todo mundo sabe quem dá vexaminosos shows de ignorância no exterior. “Um país que exige perfeição moral em sua política externa não conseguirá nem perfeição nem segurança”, foi uma das conhecidas tiradas de Kissinger. A nova doutrina da prosperidade de Donald Trump vai passar por múltiplos testes de realidade para mostrar se faz mais bem do que mal.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945