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(Sem título. Sobre ‘Cem Anos de Solidão’)

Poucas decepções são tão constrangedoras do que ler um Nobel de Literatura e não concordar com a premiação. Nesse caso, nos deparamos com duas opções: ou não sabemos apreciar uma verdadeira obra-prima literária, ou há diferentes critérios para a avaliação da qualidade de um livro e não concordamos com aqueles utilizados pela Academia Sueca. Cem Anos […]

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jul 2020, 14h30 - Publicado em 18 ago 2010, 20h36

Poucas decepções são tão constrangedoras do que ler um Nobel de Literatura e não concordar com a premiação. Nesse caso, nos deparamos com duas opções: ou não sabemos apreciar uma verdadeira obra-prima literária, ou há diferentes critérios para a avaliação da qualidade de um livro e não concordamos com aqueles utilizados pela Academia Sueca. Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, agraciado com o Nobel de Literatura em 1982, nos poupa esse constrangimento. Ao longo da leitura criamos a convicção de que este é um livro premiado – não pelo Nobel ou por nosso prazer em lê-lo – mas pela genialidade de seu autor.

Publicado em 1967, Cem Anos de Solidão foi o livro que concedeu a García Márquez reconhecimento mundial e que,segundo suas próprias palavras, marcou sua “despedida da solidão”. A mais nova edição brasileira, em 448 páginas, traz consigo o discurso de Gárcia Márquez ao Prêmio Nobel e uma Introdução que nos conta em resumo as aventura do autor, incluindo os meses em que trabalhou seis horas por dia, sete dias por semana, enclausurado com a sua inspiração de escrever Cem Anos em um fôlego só. O Nobel é apenas uma das consequências dessa inspiração materializada, que somou 50 milhões de exemplares vendidos até 2007 e lhe trouxe a fama, o posto de autor latino-americano mais reconhecido, de modo que hoje o autor se divide entre manter a simplicidade de uma vida familiar na Cidade do México, corresponder às expectativas da imprensa e de representações políticas; e é claro, escrever.

Cem Anos de Solidão é enquadrado no gênero do realismo mágico – um estilo marcante na literatura lationa-americana da segunda metade do século XX, o qual funde a narrativa do verossimilhante com o fantasioso. Nesse sentido, Cem Anos é como uma fábula da construção histórica da América Latina e das desventuras de sua gente. Macondo, o vilarejo em que todo o enredo se passa seria, assim, uma miniatura da América e a família Buendía, sua fundadora, a metáfora do povo americano. Os patriarcas dessa família, os primos José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán se casaram em Riohacha. Atormentada pela maledicência da bisavó que dizia que os filhos de primos nasciam iguanas, medo este sustentado por um parente nascido com rabo de porco, Ursula usa uma cinta de castidade de couro. A não consumação do casamento passa a ser motivo de pilhéria na cidade, até o ponto em que um tal de Prudêncio Aguilar ofende José Arcádio Buendía, e este o mata.

O fantasma de Prudêncio, contudo, continua a fazer aparições, fruto da consciência pesada do casal. Decidido a por fim ao sofrimento da assombração, José Arcádio Buendía decide partir com a mulher para o lugar mais longe que conseguisse. Acompanhados de outros jovens, eles empreendem a travessia da serra, uma jornada de mais de dois anos em busca do mar, durante a qual Úrsula dá à luz a Aureliano – futuro coronel Aureliano Buendía, dotado de todas as partes humanas e sem rabo de porco. Exaustos, sem nunca terem avistado a praia, o grupo acaba se estabelecendo na beira de um rio pedregoso onde fundam o vilarejo de Macondo.

O vilarejo prospera graças ao engenho e liderança de José Arcádio Buendía, sem que seus habitantes abandonem o misticismo, as superstições e as histórias fantásticas que, afinal de contas, estavam em sua origem. O lugar torna-se parada certa na rota de ciganos, dentre os quais vêm Melquíades, o qual torna-se grande amigo de José Arcádio Buendía e desperta nele a paixão pelos mistérios da vida cigana, como alquimia e os tapetes mágicos. No vilarejo também se encontra a vidente Pilar Terneira, que terá filhos com o coronel Aureliano Buendía e seu irmão mais novo, José Arcádio.

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Estes são, porém, apenas alguns personagens do complexo enredo, que nos revela a história de Macondo e dos Buendía. Ao longo de cem anos e sete gerações dessa família, Macondo torna-se cidade, vive a guerra civil entre conservadores e liberais, recebe uma estrada de ferro, tem instalados telégrafo e telefone, vê chegar o priemrio carro e os imigrantes americanos, que fundam uma companhia bananeira. O paralelo com a história americana é inevitável. Ainda mais se considerarmos os conhecidos dizeres de Gárcía Márquez: “não há uma linha do que escrevo que não tenha como base a realidade” .Entretanto, ainda que em Cem Anos de Solidão haja essa metáfora da realidade história latino-americana, arrisco-me a dizer que esta não é a principal realidade retratada e que a solidão referida não é unicamente a do povo latino-americano e seu passado colonial, ditatorial, atrasado. É, basicamente, a realidade de que cada indivíduo é um exemplar de solidão -a solidão de ser um só, ainda que cercado de muitos.

Por que os Buendía carregam este “ar solitário”, diversas vezes flagrado pela matriarca Úrsula, se vivem em família, na mesma casa, cercados pelas memórias e heranças materiais e psicológicas de seus antepassados? Porque a solidão é a maior dessas heranças. Um dos recursos de narrativa mais surpreendentes de García Márquez é a ausência da cronologia como a conhecemos. Passam-se cem anos, mas os personagens parecem todos coexistir e se repetir, como se “a vida andasse em círculos sobre ela própria” – de modo que no início e no fim da rota circular estivesse a solidão. Esta aparece também na metáfora da repetição – ao longo das sete gerações de Buendía, vêem-se sempre os mesmos nomes: Aureliano, José Arcádio, Remédios, Amaranta. O coronel Aureliano chega a ter 17 filhos, todos com o seu nome e se declara “cansado de se sentir repetido”. Cada personagem tem sua história própria e fabulosa, mas a repetição de nomes sugere que são cópias eternas uns dos outros. Se estão cercados de repetições de si mesmos, estão sempre consigo próprios e, portanto, sozinhos.

Em todas as estratégias dos personagens para escapar a solidão repete-se a circularidade que Úrsula enxerga no tempo e o resultado é sempre a solidão. José Arcádio Buendía padece da solidão da loucura, amarrado sob uma castanheira; o coronel Aureliano da solidão de suas 32 guerras civis, todas derrotadas; Rebeca, sua irmã adotiva, da solidão do luto, numa mansão de portas e janelas encerradas; Amaranta; outra irmã, da solidão do remorso e da virgindade auto-punitiva; e assim, até o fim das sete gerações dos Buendía. Essa história de solidões têm passagens tristes, mas predomina um espanto agradável com os múltiplos episódios fantásticos que dão graça e originalidade ao enredo, como o concubinato de Aureliano Segundo e Petra Crespi que multiplica a fertilidade dos animais ao ponto de vacas parirem trigêmeos, e coelhos azuis encherem o quintal da noite para o dia. Não passa despercebido um tom erótico, permeado por paixões dilacerantes e relações incestuosas. Também se destaca a crítica ao plano de fundo histórico, como quando termina a longa guerra civil entre conservadores e liberais, e o ex-líder dos últimos, o coronel Aureliano Buendía, assina um documento em que os liberais abdicam de todos os seus intentos a fim de obter mais votos e conclui: “agora só estamos lutando pelo poder”. O somatório final é o prazer de uma leitura repleta de passagens ora irônicas, ora poéticas sobre a vida, a morte, o tempo – a solidão.

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Não há como melhor descrever este livro de García Márquez a não ser com o título que ele mesmo escolheu. São cem anos de solidão que nenhuma síntese é capaz de descrever com a riqueza de detalhes, a complexidade do enredo e a beleza da escrita do autor. Estes são atributos que não nos permitem deixar Cem Anos de Solidão na solidão da prateleira. Abandonar a leitura por mais de alguns dias, é ter que retornar diversas páginas para recordar em que ponto do enredo paramos e a qual Aureliano ou José Arcádio o autor se refere. Não à toa, há uma árvore genealógica da família no começo do livro. Ela não só nos ajuda a reconhecer quem é quem na repetição dos Buendía, mas também nos obriga a observá-los periodicamente em seus laços familiares, acabando por familiarizar a nós mesmos com eles. Deixo, enfim, o convite para que muitos outros leitores ainda se juntem aos 50 milhões que já tiveram o prazer de amenizar com sua companhia os cem anos de solidão dos Buendía.

Giulia Ribeiro Barão

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