
Era o último dia do ano quando a polícia de Nova York foi chamada por causa de um assassinato: a anã Terri Bridges fora estrangulada em seu apartamento em Manhattan. O principal suspeito era seu namorado, Oscar Bane. Foi ele quem chamou os policiais, mas se dizia inocente e exigia ser examinado pela famosa médica-legista Kay Scarpetta. Ela era chefe da equipe de medicina legal em Watertown, o que significava comandar toda a região noroeste de Massachusetts. Como também era professora visitante da Faculdade John Jay de Justiça Criminal, em Nova York, uma de suas obrigações era prestar consultoria à polícia dessa cidade. Scarpetta era considerada uma brilhante médica-legista, mas seu sucesso se devia muito mais às suas frequentes aparições na rede de TV CNN para explicar casos como o assassinato da ex-primeira-ministra paquistanesa Benazir Bhutto. A morte de Terri Bridges vai levar Scarpetta a reecontrar velhos companheiros de trabalho que, além de desvendar esse assassinato, têm de resolver antigos e sérios atritos. É essa história que o leitor acompanha em Scarpetta, o mais recente livro da americana Patricia Cornwell lançado no Brasil (tradução de Júlia Romeu, Paralela, 384 páginas, 34,50 reais).
Depois de quinze anos de um relacionamento que começou como um caso extraconjugal, Kay Scarpetta se casou com o psicólogo forense Benton Wesley. Foi ele quem a chamou a Nova York para ajudar nas investigações do assassinato de Terri Bridges, seguindo uma ordem da promotora Jaime Berger. Os detetives Mike Morales e Pete Marino também estavam no caso. O primeiro era famoso por sua arrogância. Já o segundo lutava contra o alcoolismo e a culpa por haver tentado estuprar Scarpetta tempos atrás. Os dois não se viam desde então, mas seus nomes vinham estampando uma coluna anônima de fofocas na internet, a Quem Ver na Metrópole. “Foi ela mesma que causou isso. Desprezou, maltratou e menosprezou o investigador que era seu parceiro (…) Dá um pouco de pena de Pete Marino”, dizia um dos textos. O detetive também não teve mais notícias de Lucy, sobrinha de Scarpetta e uma grande amiga até aquele incidente. Agora ele irá reencontrá-la, pois Lucy foi contratada para rastrear os e-mails de Terri e Oscar. Juntos, eles vão utilizar as técnicas mais modernas de investigação e um grande poder de dedução para encontrar respostas num emaranhado de pistas deixadas por esse e outros crimes cometidos em circunstâncias muito parecidas. “Não tem como saber por que as pessoas fazem o que fazem. Ou quando. Mas recaída é uma boa palavra para isso. Os assassinos em série têm uma compulsão, como quem bebe ou é viciado.”
Kay Scarpetta é uma veterana. A série que tem a bonita e atraente médica-legista – que será interpretada no cinema por Angelina Jolie – como protagonista teve início em 1990 com a publicação de Post-Mortem (lançado no Brasil pela Companhia das Letras, dona do selo Paralela). Com o título que chegou agora ao Brasil e três posteriores ainda inéditos no país, Patricia Cornwell já contabiliza dezenove livros e mais de 100 milhões de cópias vendidas com Scarpetta. A autora é considerada precursora de um tipo de ficção criminal que se destaca por explorar os procedimentos técnicos de uma investigação e que tem como um dos exemplos de maior sucesso a série CSI (no ar no Brasil pelo canal pago Sony e pela Rede Record). Mas quem considera que CSI exagera na tecnicalidade não precisa ter receio de encontrar o mesmo em Scarpetta. Há, sim, a utilização de termos de medicina forense, balística e informática, mas tudo sob medida no contexto da trama. E aqueles que não leram os livros anteriores tampouco se sentirão desconfortáveis, pois a autora faz um resgate da vida de Scarpetta e revela suas ligações com os demais personagens.
Um crítico americano chegou a dizer que o encontro desse grupo para investigar a morte de Terri Bridges não fazia sentido e que a autora forçou a barra para colocá-los juntos. E afirmou que não tinha cabimento um suspeito de assassinato exigir quem iria examiná-lo. Os argumentos até fazem sentido, mas o enredo de Scarpetta é um bom suspense e detalhes assim não chegam a atrapalhar o desenrolar da história. E mesmo que o leitor não se convença do desfecho da trama, ele vai concordar que a parte da investigação já terá valido a leitura. “Comecei no jornalismo e sempre estive à procura de histórias. Ainda vou ao necrotério, aos laboratórios, à polícia, seja lá onde for”, disse recentemente em uma entrevista. Além da disposição para buscar histórias, a autora tem experiência de fato na área que aborda. Depois de trabalhar como repórter policial, Patricia passou a escritora técnica do instituto de medicina legal de Richmond, na Virginia, e, mais tarde, foi voluntária no departamento de polícia da cidade. Ela acompanhou diversas autópsias de pessoas assassinadas à procura de pistas sobre os responsáveis pelos crimes.
A própria vida de Patricia daria um bom roteiro. Em 1993, depois de sofrer um acidente quando dirigia embriagada, ela foi diagnosticada como maníaco-depressiva. A autora também é obcecada por segurança e está sempre acompanhada de guarda-costas. “Não é medo, mas não vou me colocar numa posição em que esteja vulnerável”, disse a um jornal inglês. Patricia chegou ainda a ocupar as páginas de fofocas sensacionalistas quando um ex-agente do FBI tentou matar a mulher, também ex-agente. O motivo: ele a teria encontrado com uma amante — que seria a escritora. Homossexualismo, romances com agentes secretos, dramas, fofocas e transtornos psicológicos são temas recorrentes da autora. Esses últimos, principalmente, são os que fazem de sua literatura algo distante aos enredos que colocam os crimes como consequência de arranjos sociais. Para ela, crimes são sempre caso de psicopatologia e não resultado de problemas sociais. O leitor deve ter isso em mente ao acompanhar as investigações do assassinato de Terri Bridges.