Por que Paulo Coelho é bom letrista, mas nunca deve levar o Nobel
Uma letra de música pode ser literária, mas não precisa disso para ser boa, já um romance requer alta qualidade literária para ser realmente bom
Maria Carolina Maia
O Nobel outorgado a Bob Dylan suscitou – ou ressuscitou – a discussão sobre os limites da literatura. Mais precisamente, sobre se uma letra de música pode ser considerada um texto literário. Desde que contenha elementos de literatura, a começar pela carga poética, de que Dylan nunca prescindiu, não há por que excluir um texto da categoria dos poemas e mesmo da prosa em verso. Daí a considerar toda letra de música uma verdadeira poesia, porém, vai uma grande distância. Um bom exemplo para demarcar essas diferenças é a obra de Paulo Coelho. Apesar de surpreender com a escolha de Dylan, os padrões da Academia Sueca não são assim tão elásticos, e o brasileiro, mesmo que seja um letrista interessante, dificilmente se verá cotado para o Nobel de Literatura um dia.
Parceiro de Raul Seixas, Paulo Coelho é autor das letras de algumas das melhores canções do roqueiro baiano. Os textos funcionam bem sem, mas principalmente com música: têm um ritmo que se amalgama com a melodia de Raulzito, imagens instigantes, rimas ricas e pobres e, o que é mais legal, os temas místicos, que são caros ao “mago”, aparecem de maneira mais alusiva do que direta, como acontece nos livros – daí os títulos de Coelho serem vistos por muitos como auto-ajuda.
“Eu vi Cristo ser crucificado / O amor nascer e ser assassinado / Eu vi as bruxas pegando fogo para pagarem seus pecados, / Eu vi, / Eu vi Moisés cruzar o mar vermelho / Vi Maomé cair na terra de joelhos / Eu vi Pedro negar Cristo por três vezes diante do espelho / Eu vi”, canta Raul Seixas em Há Dez Mil Anos Atrás. A letra é imagética, acessível, melódica, perfeita para ser cantada, mas não tem aquela riqueza que demanda a literatura. Aliás, padece de um ou outro ponto discutível de ordem estilística (“pagarem”) e tem um erro infeliz de português já no título. Para falar do tempo passado, basta dizer “há dez mil anos” ou “dez mil anos atrás”, juntar “há” e “atrás” é uma redundância comum, mas desnecessária.
A divertida Al Capone segue a mesma trilha de enumerar fatos históricos de um jeito simples e divertido, numa colagem pop: “Hey, Julio César, vê se não vai ao Senado / Já sabem do teu plano para controlar o Estado / Hei, Lampião, dá no pé, desapareça / Pois eles vão à feira exibir tua cabeça (…) Hey, Al Capone / Vê se te emenda / Já sabem do teu furo, meu nego / No imposto de renda”.
Em Gitá, Coelho lista sentidos místicos, numa costura interessante, que não parece pretender ser levada a sério – diferentemente dos seus livros. “Às vezes, você me pergunta / Por que é que eu sou tão calado / Não falo de amor quase nada / Nem fico sorrindo ao seu lado / Você pensa em mim toda hora / Me come, me cospe, me deixa / Talvez você não entenda / Mas hoje eu vou lhe mostrar”, inicia a letra, que continua: “Que eu sou a a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar / Eu sou o medo do fraco / A força da imaginação / O blefe do jogador / Eu sou, eu fui, eu vou.”
Já nos livros, Paulo Coelho leva o misticismo a sério. E entrega muito mais – da trama, dos personagens – do que nas letras, que parecem mais brincar e sobrevoar temas e personalidades. “Para evitar tentações do amor, seu coração estava apenas em seu diário. Entrava no Copacabana apenas com seu corpo e seu cérebro, cada vez mais perceptivo, mais afiado”, diz o narrador onisciente de Onze Minutos sobre a prostituta Maria. Uma descrição excessiva, já que desnecessária: trechos do diário de Maria podem dar a informação que o narrador oferece, mastigada, numa bandeja.
“De resto, conforme prometera a si mesma, era só agüentar mais meio ano na rotina de sempre: Copacabana, aceita um drink, dançar, o que acha do Brasil, hotel, cobrar adiantado, conversar e saber tocar nos pontos exatos – tanto no corpo como na alma, principalmente na alma – ajudar nos problemas íntimos, ser amiga por meia hora, da qual onze minutos serão gastos em abre perna, fecha perna, gemidos fingindo prazer. Obrigada, espero vê-lo na próxima semana, você é realmente um homem, vou ouvir o resto da história na próxima vez que nos encontrarmos, excelente gorjeta, afinal não precisava porque eu tive muito prazer em estar com você”, é outro exemplo de passagem que não deixa espaço para o leitor. Não deixa espaço para que ele enxergue mais do que aparece nas linhas – entre elas, abaixo delas.
Por essas e outras, Paulo Coelho pode ter sido um grande parceiro de Raulzito – e de Rita Lee, com quem colaborou no disco Fruto Proibido. Mas a Academia Sueca dificilmente gritará “Toca Raul!”.