Obra de Karl Ove Knausgård é a resposta ao nosso tempo
Enquanto as redes sociais podem nos distanciar do mundo e dos amigos, nos desumanizando; o livro 'Uma Temporada no Escuro' nos aproxima de nós mesmos e dos outros, nos comove e nos humaniza
A esta altura, com o lançamento do quarto volume da série Minha Luta no Brasil, Uma Temporada no Escuro (Companhia das Letras, 504 páginas, 59,90 reais), e com a vinda do seu autor para a Flip 2016, a história da jornada literária de Karl Ove Knausgård já é familiar para muitas pessoas. O escritor decidiu dividir as mais de 3.600 páginas de sua autobiografia romanceada em seis volumes que não obedecem a uma sequência cronológica e que podem ser lidos de forma avulsa ou fora da ordem de lançamento. Mas que também podem viciar os experimentados na saga existencial do norueguês.
A escritora britânica Zadie Smith declarou que espera pelos livros como um drogado anseia pelo crack. Exagero? Talvez, mas o magnetismo provocado pela obra do norueguês costuma captar os leitores de forma imediata, logo nas primeiras páginas. Para os iniciados na prosa limpa e direta de Knausgård, o quarto volume chega para suprir uma necessidade. Para os iniciantes, o volume é talvez a porta de entrada mais fácil para a série. Um livro prazeroso de se ler e com inúmeras cenas engraçadas ou constrangedoras — para os leitores e, principalmente, para o autor-personagem.
Karl Ove Knausgård (pronuncia-se Karl Uve Quinausgórd) tem agora 18 anos, acabou de terminar o ensino médio em Kristiansand, no sul da Noruega, e decide perseguir a carreira de escritor. Para isso, ele aceita um emprego de professor primário e muda-se para Håfjord, no belo e gélido norte do país. Seu plano era simples: ganhar dinheiro suficiente para se sustentar e ter tempo livre para se dedicar à escrita em um local calmo. Em parte, o plano deu certo. Mas os muitos empecilhos e desventuras enfrentados por ele dão corpo às histórias do livro. Bonito e inteligente, Knausgård não esconde a sua prepotência juvenil, da mesma maneira que também não oculta as suas falhas e inseguranças.
A narrativa prossegue entremeando o seu cotidiano com memórias e reflexões pontuais — sobre música, literatura, família, sexo, amizades etc. E é aí, nessa mescla de estilos, que entra a magia do talentoso escritor nórdico. Com um fluxo narrativo poderosíssimo, o autor mistura, sem o menor pudor, memórias, ficção e ensaio. O produto final é robusto e belo, criando uma teia narrativa que se desloca ora entre as ações do dia a dia e ora pelo fluxo de pensamentos na cabeça do autor. Sim, a semelhança entre o Minha Luta e o totem literário Em Busca do Tempo Perdido já tinha sido aventada aqui e acolá, mas a confirmação da influência veio em recente palestra do Knausgård em São Paulo, aonde o autor esteve para promover seu livro.
O escritor norueguês confessou que o francês Marcel Proust é sua maior influência; admitiu inclusive que inveja a forma de como o francês insere as divagações interrompendo uma cena de ação e retomando-a no mesmo ponto alguns parágrafos ou mesmo muitas páginas depois. Fazer isso e ainda manter o ritmo narrativo sem deixar o livro enfadonho não é fácil, mas Knausgård supera a dificuldade com méritos. E, em meio às cenas de bebedeiras e frustrações sexuais, e descrevendo as suas atividades como professor, o autor nos apresenta parágrafos como estes:
“Eu tinha escrito um conto bom pra c******.
Alegria, alegria, alegria.
E também havia a luz, um pouco escurecida em meio aos homens e às coisas dos homens, repleta de uma escuridão desgastada que, espalhada na luz, não a dominava nem a subjugava, mas apenas a tornava mais discreta ou mais opaca, enquanto no céu a luz brilhava pura e clara.
Alegria.”
São bastante curiosas as passagens em que o autor explica aos seus leitores como ele se tornou um escritor. Os trechos metalinguísticos, verdadeiras salas de espelhos “borgeanas”, longe de constituírem um truque fácil de um tipo de literatura voltada para si mesma, são um recurso de coesão para dar força ao realismo que a obra se dispõe a narrar.
A vida de um jovem em uma vila de pescadores esquecida na extrema borda continental da Noruega, literalmente no fim do mundo, tal como aconteceu (ou tal como o autor nos conta) é também banal, enfadonha, repetitiva e muitas vezes triste. A tristeza e a solidão física e existencial são realçadas sobretudo pela presença opressora do inverno com temperaturas negativas e escuridão durante 20 horas por dia – a tal “temporada no escuro” do título.
A sinceridade dilacerante da obra e sua extensão talvez sejam a contrapartida adequada e antagônica aos nossos dias atuais. É o tempo das micronarrativas de 140 caracteres e felicidades (muitas vezes fingidas ou exageradas) compartilhadas em fotos nas redes sociais; é o tempo das banalidades efêmeras tratadas como assuntos sérios. A caudalosa obra de Karl Ove Knausgård é a resposta adulta e literária ao mundo supérfluo, extremamente infantil e fugaz das redes sociais. Enquanto o Facebook pode usar seus poderosos algorítimos e conexões para nos distanciar do mundo e dos amigos, nos desumanizando, a obra de Knausgård nos aproxima de nós mesmos e dos outros, nos comove e nos humaniza.