Livro x série: a adaptação de ‘Sharp Objects’ para a HBO
Série com Amy Adams é fiel ao livro de Gillian Flynn, mas se permite usar recursos que deixaram a trama ainda mais interessante
Atenção: este texto contém spoilers do livro Objetos Cortantes e da sua adaptação para a HBO.
Primeiro livro de Gillian Flynn, lançado em 2006, Objetos Cortantes é uma trama instigante, por vezes assustadora, que conduz o leitor de maneira rápida ao fim, graças ao mistério a ser desvendado, e pela complexidade da protagonista Camille. No Brasil, a obra chegou em 2015, pela editora Intrínseca, depois do sucesso de Garota Exemplar, que um ano antes recebeu a adaptação para os cinemas estrelada por Ben Aflleck e Rosamud Pike. Logo, Gillian se tornou um nome queridinho entre as produtoras, que ainda levaram aos cinemas seu segundo livro, Lugares Escuros, enquanto seu romance de estreia ganhou uma série de oito episódios exibida pelo canal pago HBO — que apresentou neste domingo seu capítulo final, e já disponibiliza a série completa em sua plataforma sob demanda, o site HBO Go.
Estrelada por Amy Adams, a produção, que manteve no Brasil o nome em inglês, Sharp Objects, muda poucos detalhes da trama escrita pela autora, mas encontra desafios para representar a difícil mente e personalidade da protagonista. Na trama, a jornalista volta à sua cidade natal — a fictícia Wind Gap, no Missouri — para investigar o caso de assassinato de duas meninas. A estadia no local faz com que ela tenha que lidar com os traumas causados pela morte da irmã mais nova, quando ainda era adolescente, e a relação conflituosa com a mãe, Adora, vivida pela ótima Patricia Clarkson.
Confira abaixo as principais diferenças entre livro e série e curiosidades da adaptação:
Cicatrizes
A revelação de que Camille se corta, escrevendo palavras na pele, acontece no quarto capítulo do livro. Na série, o fato é apresentado na última cena do primeiro episódio. A automutilação serve como uma forma de expressar como os traumas da infância e da adolescência ainda afetam a vida da protagonista, que usa roupas cobrindo todo o corpo mesmo nos dias mais ensolarados. “Elas são com frequência femininas, como cartilhas de alfabetização e canções de ninar. Ou são explicitamente negativas. Número de sinônimos para ansiosa gravados em minha pele: onze. A única coisa que tenho certeza é que, na época, era crucial ver essas letras em mim”, afirma a protagonista no livro. As palavras ainda servem ao longo do livro como ferramenta para o público entender os sentimentos de Camille. Em cada situação que passa, uma expressão gravada queima em sua pele.
Na série, os produtores encontraram outra maneira de explorar a relação entre as palavras e as emoções de Camille. Os títulos de cada episódio representam as palavras desenhadas na pele da protagonista e ganham destaque ao longo da história. De acordo com o site americano Vulture, a produção da série fez uma compilação de cerca de 60 palavras citadas diretamente por Flynn, mas foram necessárias mais de 350 expressões para cobrir todo o corpo de Adams.
Uma curiosidade é que a palavra “sumir” foi trocada de lugar. No livro, a jornalista detalha que tinha reservado o pescoço para “um belo último corte”, que foi preenchido com a expressão antes de ela se internar em um hospital. Na série, “sumir” aparece no braço direito de Adams no primeiro episódio, momento em que é revelado que ela tem as cicatrizes.
Assassinatos
A brutalidade dos assassinatos das duas jovens de Wind Gap, Ann Nash e Natalie Keene, é bem detalhada por Gillian no texto e foi mantida na série. A personagem de Amy Adams encontra logo no primeiro episódio o corpo da segunda menina em um pequeno beco no centro da cidade. Enquanto a polícia tenta acalmar a situação, a câmera foca no rosto da garota, que teve todos os dentes arrancados.
O terceiro assassinato descoberto na série é um ponto de virada na trama: a irmã de Camille, Marian, foi morta pela própria mãe, através de intoxicação de remédios. No livro, a protagonista, desconfiada das pílulas que recebe de Adora, decide ir ao hospital em que a irmã ficava internada e descobre o caso ao conversar com uma enfermeira.
Já na série, Camille não precisou ter o mesmo trabalho. No sétimo episódio, o detetive da polícia Richard Willis entrega a ela uma pasta com as evidências, comprovando todo caso. A personagem de Patricia Clarkson logo se torna a maior suspeita dos dois assassinatos recentes da cidade.
Flashbacks
Escrito em primeira pessoa, o livro de Flynn possui frequentes momentos em que Camille recorda do seu passado em Wind Gap. A narradora, ao longo da obra, revela ao leitor momentos significativos da sua vida, como o dia em que perdeu a virgindade e o funeral da irmã, Marian.
Como a série não tem narrador, flashbacks foram os eleitos para ajudar a mostrar o passado da moça. As imagens em tons amarelados se mesclam com cenas do presente, recurso que deu sofisticação à série, graças à boa edição do programa. Os flashbacks também ajudaram a aprofundar melhor algumas trama dos livro. Caso do período em que ela vai para a reabilitação e a proximidade com a irmã Marian.
Algumas partes mais gráficas das memórias de Camille, no entanto, foram deixadas subentendidas. Como o dia em que ela teve relações sexuais com diversos jogadores do time de futebol da escola em uma cabana na floresta, quando ela ainda era uma líder de torcida no Ensino médio. Nenhuma cena explícita do momento foi mostrada na TV.
Reabilitação
O período em que Camille ficou internada não é muito explorado nos relatos do livro. A narradora conta apenas que passou uma temporada na reabilitação e tinha saído seis meses antes de voltar para Wind Gap. Em outro momento, ela ainda revela que o seu último caso de mutilação aconteceu quando ela usou o parafuso da privada da instituição para se cortar, ao ver que a colega de quarto tinha se suicidado, ingerindo um produto de limpeza.
Na série, esse período é bem mais explorado. Desde o primeiro capítulo, Camille tem flashbacks com o sanitário do local e a cena de enfermeiros a carregando para fora do banheiro. É no terceiro episódio, Fix, que a história é contada. A colega de quarto da protagonista ganha o nome de Alice. Cenas mostram as duas se aproximando com o tempo, até o dia trágico da morte da menina.
A casa
A casa da família Preaker é descrita logo no começo do livro e foi reproduzida com riqueza de detalhes na produção da HBO. “Uma casa vitoriana sofisticada com direito a um mirante, varanda contornando o imóvel, alpendre de verão se projetando do fundo e uma cúpula se elevando do teto”, descreve a narradora no segundo capítulo do texto.
O que chama mais atenção do que a ostensiva construção, no entanto, é algo bem menor. A casa de bonecas de Amma que reconstrói toda a arquitetura do local. O livro evidencia os caprichos da menina em passagens, como o momento em que ela briga com os pais ao notar que os pés do mini-sofá não estavam iguais aos da peça original. Todo o cuidado de Adora com a casa e o de Amma com a réplica ganha maior significado no final da trama.
Música
Depois da série Big Little Lies conquistar o público com uma trilha-sonora que contou com Elvis Presley e o americano Leon Bridges, a HBO decidiu repetir a dose. Uma playlist no Spotify com mais de quatro horas de duração, criada pela gravadora Columbia Records, reúne as músicas tocadas em Sharp Objects. Canções de bandas como Led Zeppelin e LCD Soundsystem se mesclam com Snoopy Dog e Leon Bridges, novamente.
Gillian já detalhava na literatura o potente jogo de som que o padrasto de Camille, Alan, mantinha na sala de estar da casa. O misterioso homem ouve músicas clássicas em diversas cenas introspectivas da produção (muitas delas, com fone de ouvido, apesar de manter o caro aparato sempre em perfeitas condições — um levantamento do site Vulture mostrou que o aparelho deveria custar mais de 112.000 dólares, ou quase meio milhão de reais).
O que muda na produção da HBO é que a própria Camille se mostra uma grande amante de música. A jornalista liga o som do seu celular em todo o momento em que está dentro do carro. As trilhas animadas companham a sua direção em alta velocidade, depois de ela já ter bebido algumas doses.
Uma escolha curiosa da série foi a evolução da música usada na abertura. No primeiro episódio, imagens de Wind Gap são acompanhadas de Dance And Angela, criada por Franz Waxman para o filme Um Lugar ao Sol, de 1951. Nos outros sete episódios, a composição vai ganhando novas versões, com batidas eletrônicas ou com versos de hip hop.
O final
É apenas nas últimas cenas, da mesma forma como acontece na literatura, em suas últimas páginas, que a verdadeira assassina em série é revelada. Camille olha para a casa de bonecas da meia-irmã, quando percebe o chão feito de dentes. A garota aparece na porta e confessa com uma única frase: “Não conte para a mamãe”.
A série corta logo para os créditos finais, que são intercalados com rápidas imagens de Amma assassinando as suas vítimas. No livro, a história vai mais adiante. Camille conta que a garota ficará trancafiada por anos, enquanto a mãe foi considerada culpada por homicídio doloso, pela morte da filha Marian.
A HBO ainda preferiu não mostrar o último assassinato de Amma — uma amiga que fez quando foi morar com a meia-irmã, depois de Adora ser presa. Os produtores se limitaram a mostrar a mãe da menina batendo na porta de Camille, preocupada pelo fato da filha não aparecer em casa. No livro, o corpo da jovem é encontrado em uma caçamba de lixo, com seis dentes arrancados.
O fato de a série não deixar claro o futuro da meia-irmã de Camille não preocupou a criadora Marti Noxon. “Definitivamente, as pessoas terão uma interpretação muito mais aberta do que acontecerá a seguir”, afirmou à revista americana Entertainment Weekly. “A emocionante verdade para essas mulheres — Amma, Adora e Camille — é que você pode mudar a sua percepção sobre o passado, mas nunca poderá mudar o passado em si.”
Se você precisa de apoio emocional, entre em contato com o serviço gratuito de prevenção do suicídio CVV, o Centro de Valorização da Vida, através do telefone 188 ou do site www.cvv.org.br.