
Décadas fechadas prejudicam a literatura. É o que sente o baiano João Ubaldo Ribeiro, que, após completar 70 anos em 23 de janeiro de 2011, foi alvo de uma série de convites – entre eles o da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano. “Eu tenho tido muita solicitação, talvez porque 70 seja um número redondo, demonstração de longevidade. Mas isso atrapalha, desconcentra, faz o romance começado desandar”, diz o baiano.
João Ubaldo, contudo, não parece ter pressa para nada. Se fosse rico, coisa que ele nega ser, embora tenha recebido 100.000 dólares pelo Prêmio Camões em 2008 e pelo menos dez vezes mais para trocar de editora, ele nem escreveria. “Eu não penso em me aposentar”, conta. “Se ficasse rico, provavelmente não iria querer mais escrever, apenas ler. Mas, como nunca vou ficar, já a esta altura, e ainda tenho de trabalhar para viver, continuo trabalhando.”
O valor que o fez trocar a Nova Fronteira pela Objetiva, por onde acaba de lançar o infanto-juvenil Dez Bons Conselhos de Meu Pai, ele não diz. Mas recusa a ideia de ter ficado rico com o Camões. “Depois de mordido pelo Imposto de Renda, o prêmio não é o mesmo. É menos de um décimo do que um BBB recebe”, fala, com o humor que lhe é característico. Manso trabalhador, João Ubaldo segue sem urgência a mesma rotina de todos os anos. Acorda às 5h para escrever, sai pouco à rua, às vezes encontra amigos no começo da tarde, descansa, e toma alguns chopes aos fins de semana – ele voltou a beber, mas “levemente”.
É com a mesma calma que imprime ao cotidiano que João Ubaldo Ribeiro fala a VEJA.
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Seu último livro, O Albatroz Azul, saiu há dois anos. E agora o senhor está lançando um infanto-juvenil. Há algum romance em vista? Eu estou tentando escrever (risos). Já tenho três começos escritos, de cerca de cinqüenta páginas cada um, para o livro. Cada um deles é diferente do outro, em maior ou menor proporção, mas o romance não embala, porque eu tenho tido muita solicitação, talvez porque 70 anos seja um número redondo, demonstração de longevidade, não sei… Sei que eu tenho tido uma série de convites para viajar e participar de eventos, e a maior parte deles é difícil ou impossível de recusar, seja porque tem algum amigo meu envolvido seja porque se trate de um evento assim que me interesse. Mas eu normalmente não gosto de ir, não, porque atrapalha o meu trabalho. Desconcentra e faz com que o romance em andamento, como me ensinou a dizer Rubem Fonseca, desande. É verdade: quando se volta a um romance abandonado, principalmente no começo, ele desanda, perde-se intimidade com os personagens. Então, eu nem sei se estou escrevendo realmente, porque estou nessa situação, pensando vagamente em fugir, me refugiar em algum lugar para poder escrever.
Que começos o senhor imaginou para esse novo livro? Eu mesmo nem sei direito se estou escrevendo de fato um livro. Acho que ainda estou lidando com uma definição de ponto de vista, uma caracterização do narrador, coisa que me preocupa muito normalmente. Quando fiz A Casa dos Budas Ditosos (1999), me esforcei para criar a narradora. O livro é escrito em primeira pessoa por uma mulher, eu tive de me disfarçar – eu me travesti ou me transexuei, mudei de sexo para ser o narrador. Muitas leitoras me perguntaram se aquela senhora realmente existe, o que me envaidece. Ora, se aquela senhora é suficientemente verossímil para suscitar essa pergunta é porque eu fiz direito o meu trabalho.
O senhor disse que não sabe ainda se está escrevendo de fato um livro. É possível que abandone o projeto?
É possível. Já aconteceu de livros meus gorarem. Espero que não aconteça dessa vez, se bem que está dando toda a pinta de que pode ocorrer, porque este é um ano particularmente ocupado para mim. Tem a Flip, uma série de eventos, enfim, tem uma porção de coisas a que eu vou provavelmente comparecer e que vão atrapalhar com certeza a feitura do livro.
Dicionários, notas, leituras paralelas: de que modo esses recursos podem ajudar a escrever? Sempre usei dicionário, mesmo no tempo em que eram livrões, e não era tão fácil de consultar como hoje. Agora, eu talvez use de modo descomedido, pela facilidade. Eu tenho três ou quatro dicionários de português. Notas, eu uso pouco. A maioria das notas que faço eu não entendo quando leio. E outras leituras enquanto escrevo eu evito por trauma. Aconteceu comigo, por volta dos 20 anos, de ter plagiado um livro que havia lido sem notar. Até que um belo dia ligou uma espécie de desconfiômetro em mim de que eu havia escrito praticamente igual a alguma coisa que eu havia lido. A partir daí, fiquei com uma surpresa permanente.
Que livro o senhor plagiou sem querer na juventude? Eu não me lembro exatamente que livro eu plageei. Me lembro apenas de estar lendo O Vermelho e o Negro, de Stendhal, enquanto escrevia o meu primeiro romance, Setembro Não Tem Sentido, e esses são livros completamente diferentes, e de depois ter visto no meu romance um texto muito parecido com algum que eu estava lendo (talvez o de Stendhal), o que me traumatizou.
O senhor chegou a ser anunciado como convidado da Flip de 2004, mas desistiu de ir. O que o fez aceitar participar agora? Eu desisti em 2004, porque meu nome não aparecia na divulgação do evento. Comecei a ficar intrigado com aquilo e cheguei mesmo a pensar, honestamente, que não era convidado. Meu nome nunca saía entre os participantes. Aí, um belo dia, disse que assim não queria participar. Não queria sair nos etecéteras. Mas não foi um grave problema, eu não briguei com ninguém, nem disse que jamais aceitaria ir à Flip. Só não queria ser tratado como um etecétera, porque, afinal de contas, não era um autor principiante. E só voltei agora a aceitar participar porque só agora me chamaram de novo.
O senhor já sabe de que mesa tomará parte? Ainda não sei de nada. Eu sei que quem estará comigo à mesa é o Rodrigo Lacerda, que é meu amigo, filho de um grande amigo meu, o editor Sebastião Lacerda. É um escritor de grande valor, um dos romancistas que eu acho mais importantes nessa nova geração.
Que outros escritores o senhor admira entre os mais novos? Eu gosto muito do Rodrigo, acho ele um escritor de grande valor, mas falei o nome dele porque será meu companheiro de mesa na Flip, e não vou citar mais ninguém (risos). Eu de fato não acompanho como poderia a literatura nova. Sempre reli mais do que li. Meu pai dizia, quando eu era jovem, que eu era maluco por ficar relendo os mesmos livros. Agora, então, depois de velho, eu fico lendo às vezes as mesmas páginas de Shakespeare, Mark Twain, Jorge de Lima. Não sei se é um prazer neurótico, o fato é que eu gosto.
Que convidados da Flip deste ano o senhor já leu e recomendaria? Eu sempre fui desligado… Não sei quais são os convidados deste ano e provavelmente não li nenhum, portanto, não iria recomendar a leitura.
O senhor já declarou ter se irritado com a idolatria exagerada em torno de Sargento Getúlio (1971). E, com Diário do Farol (2002), sofreu com leitores que não entenderam que os desvarios do livro eram relacionados a seu personagem maluco, não criados pelo senhor. Esses fatos representam leitores diferentes – uns mais esclarecidos, outros menos – ou estão ligados a um mesmo problema de formação cultural do brasileiro? Esse negócio de leitor é meio misterioso. É muito comum que o leitor, da maneira mais inesperada, não entenda uma ironia. Não entenda que o escritor está dizendo o contrário do que está dito. O narrador de Diário do Farol xinga o leitor. Não eu, João Ubaldo, mas muita gente reclamou que eu xingava os leitores. Isso é falta de prática de leitura. É falta de ter lido Angústia, do Graciliano Ramos, que é contado na primeira pessoa e quem se dirige ao leitor não é o Graciliano, é o personagem. Isso reflete falta de cancha com leitura, de vivência de formatos, de conhecimento. Tem que se contar com isso, faz parte.
Seus livros são muito diferentes – Diário do Farol (2002), por exemplo, é sombrio, enquanto O Albatroz Azul (2009) é um livro mais leve e bem-humorado. A que se devem essas diferenças, aos momentos de vida em que os livros foram escritos? Não sei dizer se meus livros são alegres ou sombrios a depender de como eu esteja me sentindo. Eu acho que depende mais do assunto, mas talvez, aí, só sondando o meu inconsciente. Talvez eu escolha o assunto por me sentir mais particularmente alegre ou pessimista, conforme o caso, não sei. E olhando mais tarde dá mesmo vontade de mexer no que a gente fez, sempre dá. Acho que a maioria dos escritores é assim e os editores dirão que toda vez que o texto vai para a revisão do autor ele quer meter a mão. E tem gente que mete, mesmo. Eu procuro me conter, mas às vezes não agüento e meto a mão, sim, porque há sempre um jeito de fazer e dizer melhor as coisas. A perfeição não é um atributo humano. É inatingível. Mas a gente fica fazendo força para conseguir. E aí é uma tentação irresistível. Claro que eu mexeria em muita coisa.
O senhor se diz religioso. Acha que de algum modo isso transparece em sua literatura ou procura evitar que aconteça? Não acho que literatura seja lugar de pregação de nada. Evidentemente que subjacente ao texto literário ou entremeado com ele, de alguma forma, pode haver uma visão religiosa ou cristã da vida. Nos meus livros, sempre há padres, isso é freqüente (risos). Mas nem sempre padres positivos, digamos assim. Alguns dos meus padres, talvez a maioria, não seja muito respeitável de acordo com os cânones católicos. Também há padres bons, como o santo de Vila Real. Mas eu não penso muito nisso, não procuro fazer nem evitar. A minha fé é uma coisa pessoal que me acompanha. Se ela se externa, o faz sem eu perceber, como parte da minha maneira de trabalhar.