“Estou rodeado de mortes / Defuntos caminham comigo na saída do cinema”, escreve Ferreira Gullar em Reencontro, um dos poemas de Em Alguma Parte Alguma (José Olympio, 144 páginas), livro que chega quebrando um silêncio de 11 anos. Silêncio e morte são, aliás, temas recorrentes numa obra que se pode chamar de madura – principalmente no dia que o poeta maranhense faz 80 anos, 10 de setembro.
Considerado o maior poeta brasileiro em atividade, Gullar, ao contrário da impressão que pode criar a recorrência da morte em seus versos, emite sinais claros de vitalidade. Além de um novo livro de poemas, o maranhense, que se dedica também à pintura – as plásticas são sua segunda arte –, lança uma obra de colagens, Zoologia Bizarra (Casa da Palavra, 88 páginas). Um livro povoado de animais gerados por acaso, no ano em que conquistou o Prêmio Camões.
Nos dois casos, está presente o espanto, motor criativo do poeta (“estou eterno”), além das possibilidades de significados multiformes (“estou num tempo branco”), da contemplação do caos (“só o que não se sabe é poesia”) e de resvalos constantes na filosofia (“o homem tenta / livrar-se do fim / que o atormenta / e se inventa”). Elementos que podem ser vistos nos dois poemas abaixo, extraídos de Em Alguma Parte Alguma.
E vem mais Gullar por aí: uma peça sua, o monólogo O Homem como Invenção de si Mesmo, deve ganhar em breve os palcos paulistanos – leia mais aqui. Neste outro link, você também pode ouvir Gullar recitar dois de seus novos poemas.
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Anoitecer em Outubro
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A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira
Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier
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Flagrante
o meu gato
na cadeira
se coça
corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno
a manhã clara canta na janela
estou eterno
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Maria Carolina Maia