Depoimentos são o ponto alto – e baixo – de biografia de Kerouac
Escritor americano Barry Gifford cuidou da segunda edição de ‘O Livro de Jack’ após a morte de seu colega, Lawrence Lee, em 1990 (Crédito: Ulf Andersen/Getty Images) Meire Kusumoto Continua após a publicidade Por trás da figura mítica de um dos criadores da geração beat, movimento de jovens escritores americanos da década de 1950 que […]


Escritor americano Barry Gifford cuidou da segunda edição de ‘O Livro de Jack’ após a morte de seu colega, Lawrence Lee, em 1990 (Crédito: Ulf Andersen/Getty Images)
Meire Kusumoto
Por trás da figura mítica de um dos criadores da geração beat, movimento de jovens escritores americanos da década de 1950 que influenciou – e ainda influencia – muitos daqueles que se aventuram no mundo das letras, está a figura insegura de Jack Kerouac. É esta figura que emerge de O Livro de Jack: uma Biografia Oral de Jack Kerouac (tradução de Bruno Gambarotto, Biblioteca Azul, 496 páginas, 49,90 reais), biografia em que os americanos Barry Gifford e Lawrence Lee retratam o personagem para além do mito. Eles mostram o homem que passou parte da vida em viagens pelos Estados Unidos, mas que morreu em casa, ao lado da mulher e da mãe, após se afundar no álcool, sem saber como lidar com a fama trazida pelo estrondoso sucesso da sua obra-prima, On the Road.
O Livro de Jack, que chega ao Brasil com quase 40 anos de atraso (o livro é de 1978 e ganhou uma segunda edição em 2012), não tem pretensões de ser uma biografia definitiva ou de competir com outros trabalhos que já tiveram a sua excelência reconhecida, como Kerouac: A Biography (St. Martin’s Griffin, 1994), da americana Ann Charters, professora da Universidade de Connecticut que conheceu o escritor pessoalmente na década de 1950 e há meio século se dedica ao estudo da geração beat. A obra de Gifford, também ele um escritor, e Lee, jornalista morto em 1990, tampouco traz informações inéditas e revelações bombásticas e inclusive reafirma o que trabalhos anteriores já haviam estabelecido. A novidade do livro está em sua forma: o conteúdo é apresentado como um conjunto ordenado de transcrições de entrevistas feitas com pessoas que conviveram com Kerouac durante toda a sua vida, como Allen Ginsberg, William Burroughs e John Clellon Holmes, fontes que por si só já valem a leitura. Elas entram com recuo nas páginas, como se vê a seguir:
Allen Ginsberg:
“(…) fui visitar Jack num dia de manhã enquanto ele tomava seu café, às onze ou meio-dia, e nós entramos numa conversa engraçada, já não sei mais sobre o quê. Lembro-me de ter ficado assombrado e maravilhado com ele, pois nunca tinha conhecido um atleta sensível, conhecedor de poesia. (…) Não sei sobre o que falamos, exceto poesia versus prosa ou algo do gênero…”
Kerouac conheceu Ginsberg quando estudava na Universidade de Columbia, em Nova York, após deixar sua cidade natal, Lowell, Massachusetts, em 1939. Recrutado por olheiros da universidade, que distribuía bolsas de estudos entre esportistas, Kerouac foi convidado a estudar no campus renomado por seu bom desempenho em partidas de futebol americano. Mas a passagem por Columbia seria breve e ele não chegaria a concluir a graduação, desistindo depois de uma briga com Lou Little, seu técnico na faculdade.
A estadia de Kerouac em Nova York, apesar disso, não poderia ser mais proveitosa. Foi na metrópole que ele conheceu muitos dos amigos que o acompanhariam em suas viagens, inclusive o icônico Neal Cassady, retratado em On the Road como o personagem Dean Moriarty. Amigo de Hal Chase, colega de quarto de Ginsberg em Columbia, Cassady apareceria na cidade acompanhado da mulher, Luanne Henderson (a Marylou de On the Road), em 1946, enquanto Kerouac trabalhava no livro The Town and the City, que retrata seus primeiros anos de vida, ainda quando morava em Lowell.
Luanne Henderson:
“(…) Para mim, Jack e Neal pareciam muito mais jovens do que realmente eram, como duas crianças, de talvez onze, doze anos, com seu primeiro camaradinha, um abraçado ao outro, esse tipo de coisa. Eles conversavam, divertiam-se, não era um lance sexual. Muito próximos e muito carinhosos e descobrindo as coisas juntos, ou descobrindo que gostavam das mesmas coisas, que pensavam as mesmas coisas.”
Ao longo dos anos seguintes, o escritor viajaria muitas vezes de leste a oeste dos Estados Unidos, conhecendo pessoas e escrevendo romances fortemente influenciados pelos acontecimentos de sua vida.
Com a publicação de On the Road, em 1957, quase dez anos depois de ter começado a escrever, em 1948, Kerouac se viu no meio de um verdadeiro furacão de jovens fãs que passaram a idolatrá-lo. Sem saber como lidar com a fama repentina, o escritor aos poucos se afundou na bebida alcoólica, que o levaria à morte, em outubro de 1969, após uma hemorragia na região abdominal.
John Clellon Holmes:
“(…) Não estou certo de, que se você lida com a fama, você a merece. Ele a mereceu, na minha opinião, por ser um grande escritor, mas não havia nada em sua personalidade que pudesse lidar com ela, que pudesse ser judicioso com ela (…) Se ele soubesse como o mundo funcionava, ele nunca teria se magoado com ele.”
A melhor característica de O Livro de Jack também carrega seu maior defeito. A biografia traz novo frescor à conhecida história de Kerouac, com vozes de pessoas que viveram com ele seus anos mais intensos, em uma conversa direta com o leitor. É quase possível ouvir todas essas vozes a partir das expressões usadas pelos entrevistados e pelas histórias que começam em um ponto e terminam em outro que nada tem a ver com o assunto principal, algo típico da oralidade.
Mas, exatamente por isso, os autores poderiam ter empregado um tempo maior na edição das transcrições, que vêm carregadas de repetições. Os entrevistados falam e repetem certas impressões, ao que são seguidos por outros, que dizem praticamente o que um entrevistado anterior já falou. Não deixa de ser uma forma de garantir que a informação está correta, mas ela poderia ser mais bem trabalhada para que o livro não parecesse, às vezes, um grande conjunto de ecos.