Conto de fadas no interior do Brasil
Nada contra a presença da fantasia na literatura, mas o que aparece no livro 'A Filha das Flores' já é um fantástico pasteurizado, de segunda mão

Depois de cinco álbuns de estúdio e um ao vivo, todos comercialmente bem sucedidos, Vanessa da Mata pode ser considerada uma cantora experiente, com uma carreira consolidada. Se não bastasse o êxito no mercado, com a inserção de músicas em novelas e comerciais, ela ainda ganhou quatro prêmios no Grammy Latino e, de quebra, gravou uma música bacanérrima, Boa Sorte/Good Luck, com o americano Ben Harper, guitarrista virtuoso e sinônimo de cool no meio musical. Pois, mesmo com todas essas façanhas musicais, Vanessa ainda arrumou tempo para se tornar escritora. Seu romance de estreia, A Filha das Flores (Companhia das Letras, 280 páginas, 34,50 reais), acaba de chegar às lojas, com uma história que cativa no início, mas decepciona do meio para o final. Uma pena. Talento com as letras, a autora tem de sobra. Ela nos surpreende com imagens poéticas delicadas e sintaxes intrigantes.
Em uma pequena cidade no interior do Brasil, a pequena órfã Giza (apelido de Adalgiza) passa a infância brincando com as tias e fantasiando maravilhas. É, sem dúvida, a parte mais bela e interessante do livro. Para escrever sobre a infância da protagonista, Vanessa parece ter se inspirado em outro mato-grossense, Manoel de Barros. É notável a semelhança rítmica e visual de algumas construções com a obra do poeta.
“Me lembrei de mim, pequenina, com oito anos, e de titia Florinda, já com doze. De nós duas seguindo o trieirinho das lava-pés, aquelas formigas que davam a volta no hemisfério. Éramos três ou quatro engrossando uma turminha por conta delas, o diabo em inseto, devoravam o jardim de roseiras. Abraçadas às folhas, avançavam com gostura e ignorância. Nós, mergulhados na noite, atrás das vermelhas cabeçudas, de lanternas em punho e com a atenção voltada para o trieirinho. As folhas das roseiras mordidas, sangrando no lombo das bichas bundudas e sem coração, apenas com fome. O corpinho não desgrudava da tarefa conquistada até o ponto de muitas horas de sacrifício. Se as puxássemos pelo tronco, na intenção de separá-las das folhas, bem podiam perder a cabeça, e muitas perdiam, mas jamais as folhas, as folhas elas não soltavam.
Passava uma vida, e nada de chegar à boca do formigueiro, nunca chegamos de fato do mais antigo, ao pai de todos. Era um grande mistério. As formigas faziam acontecer o sigilo. Tinham uma grandiosa estrada de um vaivém intenso, interestadual, internacional – talvez mais importante que a nossa BR. O cheiro da noite, o seu sereno, deitava na nossa testa, como que flutuando sobre nós.
Titia Florinda era vestida de olhos para aquilo, uma onça vigiando a coleção de presas. Era inteira no movimento delas. Às vezes corria veloz, atenciosa, para não pisar na estrada descamisada, despelada pelas bichinhas, desgastada e levemente afundada com o passeio do fluxo. Tão difícil quanto descobrir como começou uma fofoca – e seu grande estrago – era encontrar o seu ponto central. Formigas não entregam segredo.”
À medida que a menina vai crescendo em um típico pequeno município do interior (com direito à presença dos estereótipos e dos lugares-comuns às pequenas cidades: as fofoqueiras, os animadores de velório, o bêbado, a igreja, a sorveteria e o único médico) e se descobrindo mulher, ela começa também a questionar alguns mistérios que cercam sua existência. Órfã, sem nunca ter conhecido seu pai e sua mãe, seria ela filha de uma de suas tias? Seria a pequena Giza irmã de suas tias, portanto filha de seu avô? Além de se perguntar sobre lacunas de sua história de vida, a garota, curiosa e perspicaz, começa a pôr em dúvida práticas da sociedade em que vive. De criança sonhadora, Giza passa para a adolescente questionadora. E começa a debochar de ritos e dogmas católicos, duvida e ri da instituição do matrimônio, despreza as fofocas tão presentes em sua cidade, enfim, ela cresce. Vai também, aos poucos, se descobrindo mulher, com seu novo corpo cheio de possibilidades. E, apesar de ter dúvidas a respeito de sua beleza, os olhares alheios e elogios cada vez mais frequentes fazem a jovem Giza ter certeza: ela é uma mulher bonita.
Vanessa da Mata passou a infância e parte da adolescência em sua cidade natal, Alto das Garças, com menos de 9.000 habitantes, ao sul do Mato Grosso. Portanto, o local escolhido para abrigar seu romance é uma opção deliberada, que certamente influenciou a autora na construção da história. Com essa escolha segura e consciente, o romance ganha em verossimilhança e, no correr das páginas, realmente é possível sentir o ritmo da vida interiorana, em que pequenos acontecimentos transbordam e transfiguram-se em fatos grandiosos e, por ventura, míticos, forjando heróis e párias da historiografia oral das pequenas cidades, narrados à boca miúda por algumas pessoas ou velados por outras.
Após descobrir que sua cidade não era o centro do mundo, Giza passa a frequentar furtivamente uma pequena vila vizinha, muito mais descontraída que a sua, onde prontamente faz calorosas amizades. Em meio a tudo isso, no dia em que a protagonista completa 18 anos – notem a importância simbólica da data – ela encontra e apaixona-se pelo jovem médico Tito, forasteiro que visita a cidade com regularidade. E é depois da paixão e das revelações emanadas da vila vizinha que o caldo entorna e a história que ia muito bem começa e se enveredar por caminhos infantis, que para um leitor adulto podem ser banais, previsíveis e tediosos. Estão lá o príncipe encantado e a Rainha (sim, aparece uma rainha na história, com seu séquito de ajudantes de obras e súditos fieis). Estão lá as referências à Cinderela (com a órfã criada por tias más e invejosas) e à Branca de Neve (com um copo de suco fazendo o papel da maçã). Há ainda outras referências, menos evidentes e mais diluídas, como, por exemplo, o anel misterioso, os templos e rituais fantásticos, que também contribuem para a guinada do romance ao nada.
E aquilo com que nos deparamos na segunda metade do romance não é o estilo fantástico surpreendente e quase táctil de Gabriel García Marquez, tampouco é o fantástico instigante e revelador de Adolfo Bioy Casares. Também não faz a linha da fantasia prodigiosa de um Murilo Rubião nem das alegorias sobrenaturais de um Erico Verissimo. Ou, para ficar em um exemplo bem contemporâneo, em sua trilogia 1Q84, o escritor japonês Haruki Murakami cria um mundo paralelo que dialoga com o mundo que conhecemos, e sua história é envolta num ambiente fantástico que propicia esses encontros entre o factível e o fantasioso, num trabalho competente e poderoso. Nada contra a presença da fantasia na literatura, mas o que aparece no livro A Filha das Flores já é um fantástico pasteurizado, de segunda mão, bebido e digerido de contos de fadas. A história e o estilo podem muito bem agradar leitores crescidos acompanhados de Harry Potter e amadurecidos na Saga Crepúsculo, mas também podem tornar a experiência enfadonha para leitores mais exigentes.