A contribuição árabe foi fundamental para a construção da cultura ocidental tal como é hoje. Ao longo de oito séculos, os muçulmanos traduziram, por vezes corrigiram e difundiram o conhecimento clássico grego entre si, salvando e entregando aos europeus, que viviam então na Idade Média, um vasto saber. No livro A Casa da Sabedoria (tradução de Pedro Maia Soares, Editora Zahar, 294 páginas, 44 reais), o americano Jonathan Lyons, do Centro de Pesquisas sobre Terrorismo Global da Universidade Monash, em Melbourne, Austrália, se dedica a mostrar como os árabes foram inclusive responsáveis pela Renascença, período cuja autoria os humanistas europeus procuraram tomar. Leia abaixo a segunda parte da entrevista de Lyons a VEJA Meus Livros. A primeira parte está aqui.
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Islamismo e Catolicismo são religiões aparentadas na origem. Por que os árabes incentivaram a leitura enquanto os católicos a censuravam?
A resposta está na estrutura das duas fés. O Islã não tem uma hierarquia, embora sempre tenha havido tentativas dos poderosos de impor uma. Como resultado, cada crente tem sua responsabilidade vinculada diretamente a Deus, e é responsável por ler e interpretar a seu modo o Alcorão, que eles acreditam ser a própria palavra divina. Definir quem é um mau muçulmano e quem é um bom muçulmano é um dos maiores desafios para a comunidade islâmica. No Irã, por exemplo, os clérigos muçulmanos que estão no poder (responsáveis por barbaridades) costumam definir seus rivais políticos como “anti-islâmicos”. Mas isso realmente não tem sentido, porque não há nenhuma autoridade central para determinar exatamente o que significa ser um bom muçulmano, embora haja princípios acordados a serem seguidos. Na tradição cristã, e aqui estou me referindo principalmente à Igreja Católica, há uma autoridade reconhecida na figura do Papa. Essa hierarquia determina exatamente o que é preciso para ser um bom católico. Em um ambiente como esse, é menos importante ler do que obedecer. Além disso, há uma conhecida forte tradição dentre o sacerdócio católico de que se valorizar a leitura entre o clero, que deve interpretá-la para os fiéis.
Como as diferenças entre as duas religiões – Islamismo e Catolicismo – se refletem em diferenças entre as culturas árabe e ocidental?
Um dos maiores desafios para qualquer estudante de religião – e eu me doutorei em Sociologia da Religião – é determinar onde acaba a “cultura” e começa a “religião”. No caso do Islã, com a morte do profeta Maomé, a comunidade muçulmana perdeu ao mesmo tempo seu líder político e espiritual, e deixou de ter alguém a quem recorrer para obter uma decisão “islâmica” sobre uma questão social, religiosa ou política. Com o tempo, como acontece em qualquer religião, os ensinamentos e ideias do profeta foram registrados por uma crescente classe de sacerdotes, trabalho concluído no período medieval, centenas de anos após a morte de Maomé. Valores culturais, preocupações e questões desse período posterior se confundiram com os ensinamentos maometanos. Então, coisas que são imperativos culturais tornaram-se imperativos religiosos.
A história de como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental é contada através da figura do filósofo Adelardo de Bath. Qual a sua importância nesse processo?
Adelardo de Bath foi uma figura notável que anulou o sentimento antimuçulmano prevalecente em sua época e procurou ver o que os árabes poderiam ensinar ao Ocidente. Infelizmente, não se sabe muito da sua motivação e experiência pessoais. Em A Casa da Sabedoria, eu tento trazer Adelardo à vida porque ele é um dos meus heróis. Mais especificamente, ele voltou para casa com os “elementos de Euclides”, a fonte do nosso estudo de geometria, trabalhos de astronomia e astrologia, primeiras noções de química. Mas o maior tesouro que ele trouxe foi a permissão para o Ocidente estudar o mundo ao nosso redor.
Como foi feita a pesquisa para escrever o livro?
Eu iniciei esse projeto com a ideia de explorar ligações entre a poesia árabe e o surgimento da literatura secular ocidental. Queria, por exemplo, olhar para o relacionamento entre a poesia cortês da Espanha islâmica, conhecida como al-Andalus, e os trovadores. Mas, enquanto pesquisava a transmissão cultural do leste para o oeste, fiquei fascinado com questões maiores de ciência e filosofia. A Casa da Sabedoria é, na verdade, dois livros em um: a história da ciência e filosofia árabe no período medieval, e a história sobre como o conhecimento viajou para o Ocidente e os efeitos que produziu ao chegar lá.
A primeira parte da entrevista está aqui