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Clarice, 90: a “boa rebelde” da literatura nacional

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Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 jun 2024, 12h27 - Publicado em 10 dez 2010, 08h31

Dizer que Clarice Lispector (1920-1977), que nesta sexta-feira completaria 90 anos, foi uma escritora que conduziu a literatura brasileira a níveis de intimidade e profundidade pouco explorados no país não seria mentira. Mas pode-se dizer ainda mais dela. Para Nadia Batella Gotlib, autora de Clarice: uma Vida que se Conta (Edusp, 656 páginas), Clarice não era apenas uma autora dotada de “aguda percepção da condição humana”, mas também uma escritora capaz de romper com os gêneros tradicionais da ficção, legado que teria deixado. “Clarice praticava gêneros como a crônica, o conto e o romance, desmontando-os internamente. Sob esse aspecto, ela pode ser considerada, mesmo nos dias de hoje, entre escritores e escritoras, um dos grandes nomes da ‘boa rebeldia’ em nossa literatura”, diz Nadia, autora também do livro Clarice Fotobiografia (editora Imprensa Oficial, 668 páginas), em que analisa a escritora ucraniana crescida no Brasil a partir de suas imagens.

Um dos principais biógrafos de Clarice, Nadia vê a escritora como uma mulher que sofria de um provável deslocamento do mundo – talvez por integrar uma família de judeus imigrantes – e que transformava sua sensibilidade em livros densos, mas também capazes de conexão com as pessoas. Daí, Clarice ter sido traduzida para diversas línguas como o japonês, o russo e o polonês. “Essa forma sensível de ver o mundo pode ser encontrada já em seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, que ela publicou com 23 anos”, diz Nadia. “Sua literatura de alto nível correspondia às expectativas de um público vasto: ela escrevia para pessoas de todas as idades e sobre pessoas de todas as idades.”

Abaixo, Nadia Batella Gotlib fala sobre seu principal objeto de estudo, Clarice Lispector.
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Em entrevista a VEJA, o escritor argentino Ricardo Piglia disse que Clarice parece uma escritora de outro planeta, no sentido de que não se pode dizer facilmente que sua literatura é brasileira. A que se deve a universalidade da obra de Clarice?
De fato, a literatura de Clarice é universal porque traduz a condição humana, com seus vícios e virtudes. E com enorme competência narrativa: Clarice tem rara capacidade de registrar, em linguagem, com sutileza, densidade e ironia, detalhes que acabam traduzindo essa condição humana. Mas convém considerar que sua literatura é também datada e locada no Brasil. Macabéa (de A Hora da Estrela) remete ao povo judeu (macabeus), mas é uma alagoana pobre que tenta “melhorar de vida” no Rio de Janeiro. Essa situação é tipicamente brasileira. Sob esse aspecto, a literatura de Clarice constitui mais um capítulo da literatura brasileira depois do romance social dos anos 1930: com Clarice, o nordestino não só sai do sertão árido e seco, mas se retira do nordeste procurando sobreviver numa grande capital do sul do país.

O biógrafo Benjamin Moser (confira aqui entrevista com ele) desenvolveu uma tese sobre Clarice Lispector a partir de umclarice-fotobiografiaestupro que sua mãe teria sofrido na Ucrânia. Moser diz que a mãe engravidou de Clarice na esperança de se salvar e que sua morte se tornou uma espécie de culpa que a escritora levaria consigo. Na sua opinião, a morte da mãe influenciou de alguma forma a obra de Clarice?
De fato, essa é a tese de Benjamin Moser, que, no entanto, não se apóia em registro documental. Segundo Elisa Lispector, irmã de Clarice que era considerada o “baú” da família, porque contou a saga dos Lispector da Ucrânia para o Brasil e cuidava dos documentos familiares, a mãe sofreu “trauma” – ela não especifica se no sentido físico ou psicológico ou ambos – devido a violência causada por bolcheviques russos. De fato, na época, a região da Ucrânia onde moravam os Lispector foi assolada por pogroms, perseguições aos judeus, aliás, provocadas por várias facções políticas, não só por bolcheviques. Ainda segundo Elisa, a mãe sofria de “hemiplegia”, que é a paralisia de metade do corpo ou de parte dele, causada por lesão cerebral. Clarice conviveu com a paralisia, que era progressiva, até os seus quase 10 anos, quando a mãe faleceu. E numa crônica conta que teria sido concebida para salvar a mãe e que a cura não aconteceu. É provável que tais fatos – a hemiplegia, a cura que não aconteceu e a morte da mãe, quando Clarice era criança – tenham marcado a escritora, tal como outros episódios, ao longo de sua vida, também podem tê-la influenciado a escrever como escreveu.

Em que medida a biografia de um escritor influi na sua obra e mais detidamente, como isso se dá no caso de Clarice Lispector?
É difícil determinar em que medida uma vida influencia uma obra. As experiências de vida aparecem, na obra, mesmo em textos autobiográficos, já misturadas com o imaginário do autor. Há invenção sempre. No caso de Clarice, por exemplo, o fato de pertencer a uma família judia emigrante pode tê-la feito sentir em constante “estado de exílio”, alguém que não pertence a lugar nenhum e vivencia uma espécie de estranhamento diante dos lugares e pessoas. Mas há que se considerar também que esse estranhamento pode ser, pelo menos em parte, manifestação de um modo “especial” de o artista “enxergar” o mundo, mediante uma desautomatização, por vezes, crítica, do que o rodeia, o que permite criar sentidos inusitados.

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Clarice Lispector teria sido escritora se não tivesse vindo para o Brasil e conhecido o português?
Essa é uma pergunta que a própria Clarice se faz. E é um tipo de pergunta para a qual não se tem resposta precisa, apenas hipóteses.

Nas fotografias, é raro ver Clarice rindo. Ela era uma mulher séria ou compunha uma personagem para apresentar aos leitores?
Para fazer o livro Clarice Fotobiografia, vi centenas de fotos de Clarice só e em grupo. Mas não vi mais do que duas ou três em que Clarice aparece com “sorriso largo”. Nas demais, tal como sua personagem Ana, do conto “Amor”, nada mais que um sorriso de “meia satisfação”. Na única imagem ao vivo de que se tem notícia, a da entrevista de Clarice na TV Cultura, ela aparece séria demais, angustiada demais. Pena que seja esse o único registro gravado em som e imagem, pois seus amigos também dizem que ela era alegre e divertida. Mas uma das características de sua personalidade era a da mudança brusca de humor: em reuniões sociais, quando, de repente, resolvia sair e voltar para casa, nada havia que a fizesse mudar de ideia. O perigo é mitificar Clarice: atribuir a Clarice atitudes singulares, que, na realidade, também são nossas. Clarice percebeu isso e, em entrevista na TV Cultura, criticou pessoas que julgavam ser importante qualquer bobagem que ela dizia. Outro perigo é o de imaginar fatos “reais” referentes à sua vida, que surgem na tentativa de preencher lacunas. Nesse caso, Clarice é veemente. Numa crônica que leva o título de “Esclarecimentos. Explicação de uma vez por todas”, em que aborda justamente a questão do seu nascimento, afirma: “Não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito.”

Certa vez, a senhora disse que o olhar de Clarice tinha “um ar sedutor, instigante e um tom de desafio”.
Sim. Creio que tem. Se observar as fotos de Clarice criança verá que, em sua grande maioria, ela olha diretamente para a câmera, ou seja, para o fotógrafo. Não desvia o olhar. Essa marca persiste, ao longo da sua vida, até se transformar no olhar fulminante das fotos tiradas por Alair Gomes, no início dos anos 1960. Reconheço nesse olhar uma semelhança com o olhar de seu narrador que encara o “outro” (que pode ser inclusive cada um de nós, leitores) de modo direto, como se o enfrentasse, tal como uma personagem sua, que se encontra diante de um búfalo, na procura veemente de experimentar o ódio, num dos contos de Laços de Família.

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Na data em que se comemoram os 90 anos de nascimento de Clarice Lispector, é inevitável examinar o legado que a escritora deixou. Qual, na sua opinião, é a sua herança?
Clarice trouxe para a literatura brasileira um novo modo de contar histórias, ao mergulhar no interior das personagens para acompanhar, a par e passo, cada detalhe, cada gesto dessa intimidade, com seus anseios, desejos, ódios, sensações, afetos, medos. E tudo isso a partir de uma estratégia narrativa muito esperta, de seduzir o leitor aos poucos, puxando sua atenção a partir do relato de fatos bem banais, de modo a lhe dar a sensação de que nada de importante estaria acontecendo ali, na história, mas, ao mesmo tempo, alimentando a sua inquietação com questionamentos instigantes e perturbadores, levando-o a uma nova “descoberta do mundo”. O interessante é que praticava tais gêneros desmontando-os internamente, minando o terreno da narrativa de conceitos e recursos que, de certa forma, colocavam em xeque o próprio gênero que praticava.

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