
Maria Carolina Maia
A inédita escolha de um músico popular para o Nobel de Literatura – antes, só o indiano Rabindranath Tagore havia recebido o prêmio, mas, além de escrever prosa e poesia, ele tinha um outro perfil musical, com os hinos da Índia e de Bangladesh no currículo – não apenas reacendeu a velha discussão sobre o status literário das letras de música, mas também abriu um precedente para as próximas edições da premiação. Leonard Cohen, Lou Reed (se estivesse vivo) e talvez até Paul McCartney poderiam, assim, concorrer a um Nobel para chamar de seu.
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E, por que não, Chico Buarque e Caetano Veloso? É claro que há gosto para tudo – há quem enxergue qualidade literária em Paulo Coelho e Augusto Cury, afinal. Mas é fato que Chico e Caetano têm letras moldadas por instrumentos literários – metáforas, aliterações, sutilezas, ambiguidades, polissemia.
E não apenas eles. A música brasileira tem uma longa tradição de letristas de primeiro time, que vão de verdadeiros poetas como Vinicius de Moraes, Torquato Neto e Arnaldo Antunes, um afiliado de última hora do movimento concreto, a profissionais como Aldir Blanc e Fernando Brant, parceiros de João Bosco e Milton Nascimento, respectivamente.
Letras como as de Construção (“Os olhos embotados de cimento e lágrima”), Deus lhe Pague (“Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir / Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir / Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair”), O que Será (“Que todos os tremores me vêm agitar / Que todos os ardores me vêm atiçar / Que todos os suores me vêm encharcar”), Cotidiano (“Toda noite ela diz pra eu não me afastar / Meia-noite ela jura eterno amor / E me aperta pra eu quase sufocar / E me morde com a boca de pavor”) e Pedaço de Mim (“Metade exilada de mim”) são alguns dos exemplares da produção poética de Chico Buarque, que, como Dylan, nem sempre é bem recebido pelo público pela voz que não é, digamos, exatamente a ideal.
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De Caetano, também é possível citar uma porção: Trem das Cores (A franja na encosta cor de laranja, capim rosa chá / O mel desses olhos luz, mel de cor ímpar / O ouro ainda não bem verde da serra, a prata do trem / A lua e a estrela, anel de turquesa), Tigresa (“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel / Uma mulher, uma beleza que me aconteceu / Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu”) e O Quereres (“Onde queres revólver, sou coqueiro / Onde queres dinheiro, sou paixão / Onde queres descanso, sou desejo”).
Uma curiosidade: Ferreira Gullar, o poeta maranhense que assina a letra de Trenzinho Caipira, música de Heitor Villa-Lobos, foi o responsável pela letra do bolerão Borbulhas de Amor, do dominicano Juan Luiz Guerra – aquele de versos como “Quem me dera ser um peixe / para em teu límpido aquário mergulhar”, imortalizados por Raimundo Fagner em sua fase mais desbragadamente romântica.
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