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‘Graça Infinita’ vale o quanto pesa

Longe de ser apenas um romance “cabeça” depressivo, Graça Infinita é uma leitura absolutamente prazerosa e, em muitos momentos, hilariante

Por Diego Braga Norte Atualizado em 31 jul 2020, 01h56 - Publicado em 8 mar 2015, 09h36

Enfim, depois de uma espera de quase 20 anos, chega ao Brasil uma edição do monumental Graça Infinita (Cia. das Letras, 1.144 páginas, 111,90 reais em papel ou 39,90 em e-book), do escritor americano David Foster Wallace1.  Nesta obra, o adjetivo monumental pode ser entendido em seus múltiplos significados: com mais de 1.100 páginas (impressas em letras pequeninas) e quase 1,5 quilo, a obra é enorme em tamanho, peso e importância. Lançado em 1996, o livro é, segundo críticos respeitados, talvez o título mais influente da literatura americana das últimas décadas, desde o lançamento do On the Road, em 1957, de Jack Kerouac, marco do movimento beatnik. A influência de Graça Infinita é oceânica e está longe de ser totalmente compreendida apenas pela atual geração. A influência da obra ora aparece marcante como ondas bravas em um mar revolto – como nos livros dos escritores Jonathan Franzen, Jennifer Egan e George Saunders. Ora aparece como uma referência ao fundo, quase silenciosa, mas impossível de ser ignorada de tão grande – como um mar em estado de calmaria.
A trama do livro se passa em um futuro indefinido, mas não muito distante dos dias atuais, e os Estados Unidos, Canadá e México formam a Organização das Nações da América do Norte (Onan), o calendário tradicional foi substituído por anos patrocinados por empresas (Ano do Whopper; Ano da Fralda Geriátrica Depend e assim por diante). Nesse futuro distópico, três núcleos abrigam as muitas histórias que dão forma ao romance: a Academia de Tênis Enfield (ATE), a clínica de reabilitação Ennet, e um grupo de separatistas quebequenses que lutam pela independência do Quebec da Onan.

A vida e a obra de James O. Incandenza representam o fio condutor da narrativa – ou o espectro que assombra toda a história, como o fantasma do pai de Hamlet, na obra homônima do bardo inglês. Incandenza é o patriarca de uma família tão emocionalmente atrapalhada quanto interessante e cativante. Ele é um ex-físico ótico de sucesso que fundou a ATE e se aventurou numa carreira cinematográfica après-guarde. Sua mulher, Avril, é uma canadense de beleza estonteante e personalidade difusa – uma parede intransponível de correção, disciplina e frieza. Eles têm três filhos: Orin, o mais velho, é um jogador profissional de futebol americano meio aparvalhado; Mario é um cinegrafista com inúmeras limitações físicas e mentais, mas com muita sensibilidade; e Hal, o caçula, é um jovem adolescente superdotado e um talentoso jogador de tênis. Hal e Mario vivem na ATE, que além de academia de tênis é um colégio em regime de internato muito respeitado (e vizinho da clínica de reabilitação Ennet).

Descontentes com a Onan, que transformou parte do Canadá em um imenso depósito de lixo, os separatistas deficientes quebequenses – eles têm diferentes limitações e usam cadeiras de rodas – tentam se apossar de uma das obras de James Incandenza para usar como arma: um filme chamado Graça Infinita2 que, de tão magnético e agradável, transforma os espectadores em pessoas letárgicas e inanimadas, matando-as. Enquanto os separatistas tentam se aproximar da família Incandenza, inúmeras histórias vão se desdobrando nos núcleos do romance. E é aí que o gênio de Foster Wallace emerge com uma força devastadora – construindo um romance louco e polifônico, escrito por uma mente brilhante e compulsiva por detalhes e precisão lógico-linguística.

Definido pelo próprio autor como um “romance fractal”, as muitas histórias e aparentes fios soltos compõem a macroestrutura do todo com rigor e complexidade matemática. E sim, como num fractal, toda parte contém o todo e vice-versa. A descrição pode soar complicada, mas a estrutura em fractal é facilmente percebida por quem encara o calhamaço. As histórias se conectam (às vezes por detalhes aparentemente insignificantes, como uma das mais de 300 notas de rodapé que acompanham o texto) criando pontos de contato e espaços vazios, se completando e se distendendo, num complexo balé literário (ou jogo de tênis, como Foster Wallace certamente preferiria) do autor com o leitor. Segundo o tradutor Caetano Galindo bem explicou no blog da Companhia das Letras, ao invés de uma estrutura simétrica e linear, como a da maioria dos livros, Foster Wallace optou por uma estrutura inspirada num triângulo de Sierpinski3, um fractal. Desse modo, ele ao mesmo tempo quebra e renova a estrutura do romance contemporâneo – um projeto pretensioso e corajoso.

Para sustentar essa estrutura inédita, o autor recorre a uma linguagem também inovadora, que mistura, sem a menor cerimônia e sem soar enfadonho, uma profusão de termos técnicos e médicos com arcaísmos, gírias e muitos neologismos. Ao longo das muitas páginas, não faltam assuntos para Foster Wallace mostrar seu completo domínio narrativo e estilístico. Ex-estudante de matemática aplicada e autor de um livro teórico sobre o infinito4, ele escreve com segurança sobre lógica, números e equações. Aliás, em Graça Infinita, ele escreve com graça e propriedade sobre quase absolutamente tudo: doenças mentais, farmacologia, jogos de tênis, filosofia, cenas familiares, resenhas de filmes, armas nucleares, arquitetura, memórias infantis, condições atmosféricas, relações amorosas, diálogos banais e muitos outros assuntos.

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Edição brasileira do livro
Edição brasileira do livro “Graça Infinita” (Divulgação/VEJA.com)

O livro também é um poderoso compêndio das imperfeições humanas, físicas e mentais, e choca com relatos abrasivos de personagens com os mais variados problemas e histórias de vida. Exemplos: uma viciada em drogas dá à luz um natimorto e o carrega por semanas para a imagem de mãe solteira a ajudar em sua mendicância para sustentar seu vício (até que o bebê morto começa a feder); uma menina que tem de conviver com uma mãe que a tortura psicologicamente e com seu pai que constantemente abusa de sua irmã deficiente e indefesa; entre outros relatos de gelar os ossos.

Longe de ser apenas um romance “cabeça” depressivo, Graça Infinita é uma leitura absolutamente prazerosa e, em muitos momentos, hilariante. E assim, alternando um emaranhado de situações surreais, com relatos trágicos e cômicos, o autor investiga questões essenciais do tempo atual: sustentabilidade, sanidade, prazer, culto à beleza física, consumo e entretenimento. Por meio de deformados, viciados, bipolares, aleijados, psicóticos, alcoólatras, maníacos compulsivos, depressivos, sociopatas, assassinos, psicopatas e outros tipos da vasta fauna humana, Foster Wallace coloca os leitores e a própria literatura diante de um espelho fragmentado, incompleto, perverso e belo. O resultado de suas escolhas formais e estéticas pode não agradar a todos, mas é um trabalho inegavelmente instigante. Um desses livros que não se esgotam na primeira leitura e que deixam um zumbido permanente ecoando na cabeça de seus leitores. Uma obra genial e geniosa.

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[1] David Foster Wallace nasceu em 1962 em Ithaca, no Estado de Nova York, e se suicidou aos 46 anos em Claremont, na Califórnia. Escritor, jornalista, professor de literatura, ele também foi um excelente tenista e, segundo relatos, só não se profissionalizou porque preferiu seguir a carreira acadêmica. Como jornalista, ele foi apontado como renovador do estilo americano New Journalism, e levou os ensinamentos de Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer a um novo patamar. Como escritor, Foster Wallace publicou contos e dois romances, além de ter deixado um terceiro, publicado postumamente. No Brasil, a Cia. das Letras já publicou, além de “Graça Infinita”, os títulos “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” e “Ficando Longe do Fato de já Estar Meio que Longe de Tudo”, ambos coletâneas de  contos e trabalhos jornalísticos.

[2] O título original do livro, “Infinite Jest”, é um excerto de uma fala do quinto ato de “Hamlet”, de William Shakespeare. Numa das cenas mais famosas e replicadas da dramaturgia, o atormentado príncipe dinamarquês segura a caveira do falecido bobo da corte Yorick e diz: “I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest, of most excellent fancy” (em tradução livre: “Eu o conheci, Horatio, um cara sempre brincalhão, cheio de imaginação”).

Sierpinski_evolution
O triângulo de Sierpinski: estrutura que se divide em fractais ()
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[3] Criado pelo matemático polonês Waclaw Sierpinski, o triângulo que leva seu nome é uma forma elementar na geometria fractal por diferentes motivos, ente eles: qualquer uma de suas partes é idêntica ao todo; não perde a sua definição inicial à medida que é ampliado.  Para desenhar um triângulo de Sierpisnki, basta fazer triângulo equilátero com um vértice apontando pra cima. Aí, desenhe dentro outro triângulo, com o vértice apontando pra baixo. Assim, são criados mais três triângulos e áreas vazias para repetir o processo infinitamente, como na imagem abaixo.

[4] “Everything and More: A Compact History of Infinity”, ou Tudo e Mais um Pouco: uma História Compacta do Infinito, em tradução livre. Lançado em 2006, o livro ainda não tem tradução no Brasil.

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