É HOJE! Assine a partir de 1,49/semana
Imagem Blog

Mens sana

Por Ilana Pinsky Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade
Continua após publicidade

O que está em jogo quando escolhemos o fim?

Não há uma definição única e universalmente aceita para eutanásia ou morte assistida; questão ganhou destaque com caso do poeta e filósofo Antônio Cícero

Por Ilana Pinsky*
Atualizado em 29 nov 2024, 17h45 - Publicado em 27 nov 2024, 08h00

Alguns temas são tão delicados e cercados por tabus culturais que tendemos a evitá-los, até que a realidade nos force a enfrentá-los. A eutanásia é um deles. Seja chamada de “morte assistida por médicos”, “suicídio assistido” ou outro termo, a prática envolve dilemas éticos profundos e desafia nossas concepções de autonomia e dignidade no fim da vida. Não há uma definição única e universalmente aceita para eutanásia ou morte assistida.

Frequentemente, diz-se que na eutanásia o médico administra a medicação, enquanto na morte assistida o próprio paciente o faz. Na morte assistida há um obstáculo para pacientes com limitações físicas graves, como tetraplégicos ou pessoas com doenças neurológicas, que se veriam excluídos do procedimento pela incapacidade de tomar sozinhos a medicação. No entanto, o cerne da questão não é tanto quem administra, mas sim o fato de estarmos diante do desejo explícito de encerrar a própria vida em situações de sofrimento extremo. E é justamente essa realidade que nos obriga a encarar nossos próprios medos e preconceitos.

No Reino Unido, o parlamento deu o primeiro passo nesta sexta-feira, 29, para aprovar um projeto de lei para permitir a morte assistida. Foram 330 votos a favor e 275 contra, segundo a agência de notícias Reuters.

No Brasil, a questão ganhou destaque recentemente com o caso do poeta e filósofo Antônio Cícero, que optou pela morte assistida na Suíça. Sua decisão abalou o público e trouxe à tona o debate que há muito evitamos enfrentar. Diagnosticado com Alzheimer em 2023, Cícero decidiu que preferia morrer antes de perder completamente a capacidade cognitiva, um cenário inevitável em estágios avançados da doença. Sua decisão não foi impulsiva; ele se preparou meticulosamente com apoio do marido para o momento, informando apenas seus amigos e familiares mais próximos um dia antes de partir.

Sua carta de despedida, publicada na imprensa, foi direta e tocante, uma rara demonstração pública de como terminar a própria vida pode ser vista não apenas como uma escolha de desespero, mas como um ato de controle e dignidade diante do sofrimento. A história de Cícero ecoa outras histórias pelo mundo, lembrando o caso do Dr. Jack Kevorkian, o “Dr. Morte”, que trouxe o debate sobre eutanásia à esfera pública nos anos 1990.

Kevorkian, patologista americano, auxiliou centenas de pacientes a morrer, muitas vezes filmando os procedimentos, para forçar o debate ético e legal sobre o direito ao suicídio assistido. Ele não deixou um sucessor direto, mas seu trabalho abriu caminho para que países ao redor do mundo criassem ou ampliassem legislações sobre o tema. No Brasil, a eutanásia e a morte assistida são consideradas crimes. A Constituição de 1988 garante o direito inviolável à vida, o que é interpretado como um obstáculo significativo para qualquer movimento em direção à legalização.

Continua após a publicidade

Contudo, o Conselho Federal de Medicina permite a ortotanásia — a suspensão de tratamentos que apenas prolongam o sofrimento de pacientes terminais. Isso demonstra que há uma pequena abertura para respeitar a vontade dos pacientes, mas ainda longe de oferecer a autonomia que vemos em outros países. Em contraste, países como Bélgica, Holanda, Suíça, Austrália, Suíça e Canadá têm programas de eutanásia/morte assistida legalizados e amplamente regulamentados.

No Canadá, o programa MAID (Medical Assistance in Dying) é abrangente, embora pessoas com transtornos mentais só sejam elegíveis se também apresentaram uma condição física “grave e irremediável”. Para se ter uma ideia do alcance do programa, em 2022, 13.241 pessoas morreram utilizando o MAID, representando mais de 4% das mortes no país. Na Austrália, a eutanásia é legal na maioria dos estados do país para adultos com uma doença incurável, progressiva e terminal.

Desde a década de 1940, a Suíça autoriza o auxílio ao suicídio e é um dos poucos países que permite que estrangeiros acessem o procedimento. Contudo, a legislação suíça exige que apenas o próprio paciente administre a medicação, excluindo qualquer intervenção direta de terceiros. Na Holanda e na Bélgica, até mesmo pacientes com transtornos mentais severos que não melhoraram com múltiplos tratamentos podem ser qualificados para a morte assistida. Na América do Sul, Equador e Colômbia despenalizaram a eutanásia.

Nos Estados Unidos, apenas alguns estados, como Oregon, Califórnia e Nova Jersey, permitem a prática, e sempre com restrições rigorosas. Em geral o paciente precisa padecer de doença física terminal com expectativa de vida de não mais de seis meses e certificada por mais de um médico.

Continua após a publicidade

Helen Taler, irmã do ex-prefeito de Nova York Ed Koch, ilustra como essa legislação pode proporcionar uma oportunidade rara de planejamento e controle sobre o fim da vida. Aos 92 anos e após décadas enfrentando um câncer incurável, Helen organizou sua morte assistida com uma serenidade impressionante, agendando-a para um sábado, por ser mais conveniente para seus filhos. Mostrando um nível incomum de controle sobre o próprio destino, ela chegou a telefonar para a seção de óbitos do jornal The New York Times, uma semana antes do procedimento, para discutir os detalhes do anúncio.

Esses casos levantam uma questão inevitável: uma morte agendada, conhecida e organizada, resulta em um luto mais suave ou mais sofrido para a família? Não há uma resposta fácil. Um estudo qualitativo de 2022 analisou as experiências de luto e reações sociais de 27 pessoas na Holanda que perderam seus parceiros. Doze deles sofriam de transtornos mentais e morreram por morte assistida por médicos e 15 por suicídio.

Os resultados mostraram que o luto após a morte assistida foi menos sofrido do que o luto por suicídio. Em casos de morte assistida, o fato de a solicitação ter sido avaliada por médicos e aprovada ajudou familiares e amigos a compreenderem o sofrimento mental do falecido, enquanto no caso de suicídio, os parceiros sobreviventes às vezes tiveram de enfrentar questionamentos legais e maior estigma social.

Outro estudo, uma revisão sistemática analisou dez artigos sobre o impacto do luto em pessoas que perderam entes queridos por eutanásia ou suicídio assistido. Os resultados mostraram que, em geral, essas pessoas apresentaram níveis de luto, saúde mental e estresse pós-traumático semelhantes ou inferiores aos de quem perdeu alguém por morte natural. O envolvimento no processo de decisão e o sentimento de respeitar a vontade do falecido parecem facilitar o luto.

Continua após a publicidade

Contudo, as limitações dos estudos incluem amostras não representativas e retrospectivas, destacando a necessidade de pesquisas mais robustas à medida que mais países legalizam essas práticas. A idade do paciente, a comunicação com a família, o estado de saúde são alguns dos fatores que influenciam o impacto emocional da eutanásia.

Profissionais experientes como a Dra. Ellen Wiebe, que atua no programa MAID no Canadá, acreditam que o direito de escolha é fundamental. Wiebe, que também realiza abortos, vê as duas práticas como extensão do mesmo princípio de autonomia sobre o próprio corpo. Em entrevistas, ela revela que nunca se arrependeu de ter facilitado um procedimento de eutanásia, embora reconheça que, em alguns casos, tenha havido discordância entre a vontade do paciente e a da família. “Eu sigo o desejo do paciente”, diz ela, defendendo que a dignidade e a autonomia devem prevalecer mesmo nas situações mais difíceis.

No entanto, a legalização da eutanásia levanta questões espinhosas e merece um debate cuidadoso, que extrapola a garantia do direito de escolher. Um dos receios mais frequentes é que pessoas vulneráveis — especialmente aquelas em situação de pobreza, com doenças crônicas debilitantes, ou que sentem que são um peso para suas famílias — possam ser sutilmente pressionadas a optar pela morte assistida. A possibilidade de que o desejo de “não ser um fardo” acabe se tornando um motivo oculto para a decisão de morrer é real, especialmente em sociedades em que o custo dos cuidados de saúde é alto e os recursos são limitados.

Outro ponto de preocupação é o risco de que sistemas de saúde, públicos ou privados, possam ver a eutanásia como uma alternativa econômica para tratamentos prolongados e caros. Isso poderia criar uma pressão implícita para médicos e pacientes, distorcendo o verdadeiro propósito do procedimento. Como garantir que a escolha seja sempre genuína e não influenciada por fatores financeiros ou familiares? Essas questões são legítimas e precisam ser colocadas à mesa. No entanto, evitar a discussão sobre a eutanásia por medo desses dilemas não elimina o problema — apenas perpetua o sofrimento.

Continua após a publicidade

A falta de opções para pessoas com doenças terminais e crônicas muitas vezes resulta em mortes solitárias, dolorosas e desassistidas. O silêncio sobre o tema não impede os suicídios em contextos desesperadores, em que pessoas sem acesso a uma morte digna e assistida, acabam tomando medidas drásticas por conta própria. É um equilíbrio delicado que precisamos encontrar: proteger os mais vulneráveis, evitando abusos e pressões externas, ao mesmo tempo em que garantimos autonomia e dignidade para aqueles que, conscientemente, escolhem encerrar a vida de maneira controlada e compassiva. Falar abertamente sobre o fim da vida é complexo e incômodo, mas essencial.

* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Columbia

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.