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Mens sana

Por Ilana Pinsky Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade

Crenças limitantes: as histórias que contamos para não mudar

Os discursos que internalizamos para não tomar medidas que podem inclusive melhorar nossa vida

Por Ilana Pinsky
12 Maio 2025, 17h00

Clara tem 55 anos e uma sensação persistente de que sua vida foi escrita por outras mãos. Com dois filhos criados, um marido com quem tem uma convivência tranquila e um diploma de Administração que, na prática, nunca se transformou em profissão, ela se destaca em cuidar — da casa, dos filhos, dos outros, dos problemas que não são dela — como poucas. Fora disso, sente que não tem competência para concluir nada.

Começa cursos e para. Faz planos e esquece. Sonha, mas logo desiste. Tudo isso vem embrulhado num nó que parece tristeza, mas é também perplexidade e inveja — das amigas que têm carreira, sucesso, agenda cheia, e ainda postam fotos fazendo trilha ou curso de cerâmica. Quando tenta imaginar um novo começo — um trabalho, uma viagem sozinha, uma versão dela que não seja extensão de ninguém — algo trava.

Um desconforto que parece vergonha, mas é medo. E uma voz interna, paciente e implacável, sussurrando: “Você? Agora? Quem você pensa que é?” Clara não responde. Ela levanta, caminha até a cozinha e abre o armário. Três cookies depois, o mundo está um pouco mais doce — e um pouco mais distante.

E tem o Paulo. Que acredita, firmemente, que estudar não é pra ele. Que esse tempo já passou (afinal, tem 27 anos), não tem mais cabeça, isso é coisa pra outros. Parece só uma decisão prática, mas é um enredo inteiro sobre sua inteligência, seu valor, sua motivação. Paulo diz que não liga pra essas coisas, que nunca foi ambicioso.

Mas será que essa ausência de ambição é mesmo uma virtude? Ou será que também esconde o medo de desejar, mas falhar? Às vezes, a gente finge que está em paz com o lugar onde se estabilizou, só porque parece menos arriscado do que procurar uma porta de saída. Acomodar-se, nesse caso, não é maturidade. É cautela disfarçada de satisfação.

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Esse tipo de voz interna, que questiona e desmotiva, é uma realidade silenciosa compartilhada por muitas pessoas. A bem da verdade, não há ser humano que escape disso. Todo mundo carrega o que a psicologia chama de crenças limitantes — convicções arraigadas, muitas vezes profundamente internalizadas, sobre quem somos e o que podemos ou não alcançar.

Crenças limitantes não são falhas de caráter. São estruturas mentais. E, dependendo de como são usadas, podem até ajudar a manter alguma ordem na bagunça que é viver. Já pensou se todo impulso virasse ação? Se toda possibilidade parecesse viável? Seria insustentável. Essas crenças atuam como filtros: economizam energia, reduzem incertezas, nos dão um sentido de continuidade. O problema é quando deixam de ser atalhos úteis e viram trilhos fixos — e a gente passa a acreditar que só existe um caminho possível.

Há quem acredite que essas crenças são apenas ecos do passado — da infância, dos pais, da escola. E são. Mas também são fabricadas todos os dias, em interações sutis, olhares enviesados, comentários inofensivos, decisões que tomamos para não desagradar.

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A mulher que acha que já passou da idade de tentar outra profissão. O homem que acredita que não pode demonstrar vulnerabilidade. A menina que se convenceu de que não é inteligente porque foi mal em matemática aos doze anos. O rapaz gay que nunca levou um namorado ao almoço de domingo porque “não quer causar desconforto”. A pessoa com transtorno de deficit de atenção que repete que “nunca vai conseguir terminar nada”. O sujeito com histórico de depressão que se convence de que “felicidade não é pra ele”. A mulher com ansiedade que desiste de buscar uma posição de liderança porque “não tem perfil”.

Essas fronteiras invisíveis que aprendemos a não cruzar — “não sou boa com números”, “se eu descansar estou sendo preguiçosa”, “não nasci para isso”— muitas vezes se apresentam como traços de personalidade. Mas, frequentemente, são só crenças que colamos no peito depois de repeti-las tantas vezes. Só por curiosidade, tente o exercício clássico da seta descendente da terapia cognitiva que investiga, em camadas, o que realmente está por trás dessas afirmações.

Por exemplo: alguém diz “eu sou uma pessoa que não gosta de conflito”. Parece simples, quase uma preferência pessoal. Mas, ao aplicar a pergunta-chave — se isso for verdade, o que isso significa sobre mim? — talvez venha: “significa que sou tranquila, madura, equilibrada”. Insista mais um pouco — e se isso for verdade, o que mais significa? — e pode surgir: “significa que, se eu entrar em conflito, as pessoas vão se afastar”. E mais uma vez — e se isso acontecer, o que isso diz sobre mim? — “que eu sou desagradável, difícil de amar”.

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A crença, no fim, não era sobre conflito. Era sobre pertencimento, sobre a fantasia de que só seremos aceitos se formos inofensivos. Esse tipo de raciocínio, que parece simples, revela o quanto nossas convicções sobre “quem somos” frequentemente escondem o medo de não sermos amados, de não sermos aceitos pelo grupo, de perdemos a segurança, controle, autonomia, dignidade.

Há um outro tipo de armadilha, ainda mais sofisticada, que também se apresenta com a palavra “limite”: a ideia de que não temos nenhum. Frases como “Você pode tudo, se acreditar em si mesmo”, “Se você quer, você consegue”, ou ainda “O único obstáculo entre você e o sucesso é a sua mentalidade” soam inspiradoras — e vendem livros, cursos e mentorias. Mas são, na prática, a versão fitness da culpa.

Você não conseguiu porque não tentou o bastante. Você não é feliz porque não quer. Você não muda porque tem medo do sucesso (!). A ironia é que essa ideia também é uma crença limitante — só que disfarçada de empoderamento.

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A verdade é que não podemos tudo. Eu, por exemplo, não consigo abrir espacate, nem manter a compostura zen quando escuto alguém muito prolixo em situações sociais. Temos história, corpo, genética, contexto. E temos, sim, desejos que não se realizarão. Parte da maturidade talvez seja aprender a distinguir entre os limites que nos foram impostos e os que fazem parte da vida real. Querer tudo é um tipo de delírio que serve, entre outras coisas, para nos proteger de querer algo de verdade — e não conseguir.

Na psicologia contemporânea, há amplo consenso de que crenças limitantes não são sintomas de fraqueza pessoal, mas produtos de processos de aprendizagem e adaptação. Elas se instalam cedo — por reforço, por exclusão, por medo — e depois são mantidas por padrões de pensamento automáticos que o cérebro usa para economizar energia e reduzir dissonâncias.

Entendê-las exige método, não mágica. E desfazê-las, quando possível, leva tempo. Mas o primeiro passo não é acreditar que tudo seja possível. É admitir, com lucidez, que talvez você esteja acreditando em coisas que simplesmente não são verdadeiras.

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* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_

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