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A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade

Afeto ou alienação? O que os bebês reborn nos dizem sobre os vínculos hoje

Colunista analisa o fenômeno curioso - para não dizer bizarro - que tomou conta das redes sociais

Por Ilana Pinsky
15 Maio 2025, 17h33

Como psicóloga, evito cuidadosamente o uso da palavra “loucura”. Primeiro, porque carrega estigmas que não ajudam ninguém. Segundo porque é um atalho conceitual preguiçoso — e, honestamente, pouco útil para entender o comportamento humano. Terceiro porque geralmente é o que a gente diz quando não sabe o que está vendo.

Mas eis que me deparo, repetidamente, com vídeos, relatos e casos clínicos sobre adultos que tratam bonecos hiper-realistas — os famosos “reborn” — como se fossem bebês reais. E confesso: minha régua interna de “isso é simbólico?” começou a apitar.

Sim, elas existem há mais de 20 anos. Na época, o foco estava na arte envolvida na confecção: moldes minuciosos, pintura manual, fios de cabelo implantados um a um. Era — e ainda pode ser — um trabalho belíssimo de escultura hiper-realista, voltado a colecionadores, artistas e pessoas apaixonadas por bebês.

Algo entre o afeto, o hobby e a nostalgia. Os artigos antigos sobre o tema falavam de artistas plásticos, entusiastas do realismo, e algumas mulheres sem filhos que canalizavam seus afetos cuidando dessas criações. Um pouco excêntrico? Talvez. Mas ainda dentro da zona segura do “cada um com seu hobby”.

Hoje, a história é outra. Como acontece com quase tudo atualmente, o que era nicho virou espetáculo. As bonecas não apenas ganharam roupas de marca e carrinhos com suspensão reforçada — elas têm quartinho decorado, certidão de nascimento e festa de mesversário – explicando para quem não tem bebê por perto: trata-se da comemoração mensal de cada “mês de vida” da criança.

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Um dos vídeos que viralizou recentemente no Instagram mostrava um casal discutindo com seriedade comovente (ou cômica, depende da lente) sobre quem ficaria com a boneca Reborn após o fim do relacionamento. Ela dizia que havia dado à luz — metaforicamente, claro. Ele argumentava que cuidava dela à noite. Ninguém cedeu. Faltou só o juiz de família.

Não são poucos os vídeos que circulam nas redes mostrando adultos cuidando das bonecas como se fossem filhos: dando banho, registrando em cartório, colocando na cadeirinha do carro (com cinto). Tem também a influenciadora que, ao enfrentar o ninho vazio depois que o filho cresceu, adotou uma reborn chamada Sofia. Segundo ela, a presença da boneca trouxe paz e senso de propósito. O marido, inicialmente desconfiado, acabou aceitando. “Pelo menos essa não chora”, comentou.

O que, convenhamos, é um upgrade realista para muitos pais. Outro caso é o de uma jovem que amamenta suas sete bonecas (isso mesmo, sete) como parte de uma rotina meticulosa. Ela compartilha tudo no TikTok, e embora enfrente olhares tortos na rua, encontrou na comunidade online um espaço acolhedor — e lucrativo.

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Diante disso, a pergunta que surge não é só “por que as pessoas fazem isso?”, mas “em que momento deixamos de brincar para começar a substituir afetos e necessidades?” Como profissionais de saúde mental, sabemos que há contextos em que esse tipo de prática pode ter função terapêutica: lidar com o luto, a infertilidade, ansiedade parental, entre outros.

Mas há uma linha tênue entre usar um objeto como recurso simbólico e investir nele vínculos substitutivos — especialmente quando a fantasia é reforçada, não questionada.

Há algo nesse fenômeno que remete ao conceito de folie à deux — um termo da psicologia usado para descrever quando duas pessoas compartilham um mesmo delírio, reforçando mutuamente uma realidade paralela. Mas agora estamos vendo algo semelhante em versão ampliada: uma folie à plusieurs, multiplicada por algoritmos, curtidas e comentários empáticos ou raivosos.

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Um delírio em rede, com filtro fofo e trilha sonora emocional. E quase tão impressionante quanto as pessoas que se entregam publicamente a essas relações com bonecas são as reações que provocam.

Há quem expresse indignação ou até ódio como se estivesse diante de uma ofensa pessoal — um reflexo, talvez, do quanto a linha entre o íntimo e o público anda tênue. No fundo, talvez o desconforto seja menos sobre as bonecas e mais sobre um movimento mais amplo: o de buscar vínculos em formatos cada vez mais seguros, previsíveis e — por que não dizer? — unilaterais.

Pense nas pessoas que namoram máquinas com inteligência artificial, ou que criam relações profundas com avatares digitais, influencers virtuais ou personagens idealizados. Em comum, há uma ausência de reciprocidade real. Nada de frustração, conflito, crescimento mútuo — só uma entrega controlada, onde ninguém nos contraria. Isso, sim, é algo que merece nossa atenção.

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Esse movimento não é mais marginal. Estamos falando de milhões de pessoas envolvidas — seja como participantes, seja como espectadores atentos (e muitas vezes fascinados) nas redes. A tendência se espalhou. E, num certo nível, a própria reação a ela acaba sendo uma forma de envolvimento. Foi por isso que eu mesma me perguntei várias vezes: faz sentido entrar nessa conversa?

A resposta, acho, é sim — porque esses comportamentos aparentemente excêntricos costumam dizer muito sobre o mundo que estamos construindo. E também sobre o que estamos, aos poucos, deixando de sustentar: vínculos reais, com suas complexidades e frustrações. Se algo nos incomoda a ponto de nos fazer rir, torcer o nariz ou filosofar, talvez valha mais a pena compreender do que simplesmente desconsiderar.

Nem Freud imaginaria que um dia a disputa pela guarda de uma boneca seria levada tão a sério. E olha que ele já era bem criativo.

* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram

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