Rio em guerra
O ensaísta Davi Lago mostra porque outras metrópoles mundiais foram capazes de superar a violência urbana e são exemplos concretos para a capital fluminense
A primeira guerra transmitida ao vivo, em escala planetária, e diretamente do front de batalha, foi a Guerra do Golfo no início dos anos 90, pela rede televisiva estadunidense CNN. O desenvolvimento dos satélites retransmissores em órbita geoestacionária foi um avanço tecnológico que possibilitou este feito. Para grande parte da audiência mundial as imagens de tiroteios ferozes, mortes e cadáveres reais nas telas domésticas de TV causaram espanto e comoção. No Brasil, por outro lado, explosões de granadas, batalhas com fuzis e a repetição ininterrupta de assassinatos infelizmente fazem parte da realidade do Rio de Janeiro. As imagens do brutal assassinato de médicos em um quiosque na Barra da Tijuca na última semana, soma-se a tantas outras atrocidades que foram banalizadas. Mês passado a Polícia Civil divulgou um vídeo em que narcotraficantes fazem treinamento de guerrilha perto de escolas em uma comunidade do complexo de favelas da Maré, na zona norte da cidade. A desenvoltura com a qual assaltos e assassinatos são realizados no Rio tornou-se proverbial mundo afora.
A violência urbana, em algum grau, caracteriza a dinâmica das metrópoles modernas. A situação do Rio de Janeiro, entretanto, destoa. A ex-capital brasileira, apesar de suas incomparáveis belezas naturais, destaca-se por episódios característicos de zonas de guerra. Basta verificar a lamentável amplitude e regularidade dos dados. Três diferentes indicadores dimensionam esta violência: 1) entre janeiro e agosto de 2023 houve 2.156 tiroteios/disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Ao todo, 1.382 pessoas foram baleadas neste período, das quais 711 foram mortas e 671 ficaram feridas; 2) no cômputo total do Estado do Rio — e além das mortes por armas de fogo — os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio indicam que nos primeiros sete meses de 2023, foram registradas 1.941 mortes na categoria “homicídio doloso” – número 8,92% maior que os 1.782 registrados em 2022 no mesmo período; 3) o Monitor da Violência, desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que o Estado do Rio de Janeiro registrou alta de 17,3% no número de assassinatos nos primeiros seis meses de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado.
Se a questão, por óbvio, não admite respostas fáceis, por outro lado, também não admite complacência. Todas as soluções e estratégias de enfrentamento da violência no Rio indicadas nas pesquisas técnicas e acadêmicas conceituadas se agrupam em dois eixos centrais: desenvolvimento social e eficiência do sistema de justiça. Não existe outro eixo “mágico”. Portanto, sem desenvolvimento social, cidadãos e cidadãs completamente abandonados pelo Estado, sem rede pública de eletricidade, água e esgoto, se tornam reféns de todo tipo de facção criminosa. A antropóloga Erika Robb Larkins, em sua pesquisa-referência “The Spetacular Favela: violence in modern Brazil”, afirma que a simbiose das relações Estado-favela no Brasil cresce sistematicamente e os tentáculos das facções atravessam diversos setores do poder público. Não por acaso, Filipe Campante, professor de economia política, denomina o declínio da cidade e do estado do Rio de Janeiro de “desastre em câmera lenta”, destacando a perda gradual de relevância econômica, e política, o agravamento de problemas estruturais, e a sucessão de péssimas administrações públicas. O número expressivo de governadores, secretários de estado, representantes do legislativo estadual e políticos fluminenses que foram presos ou se envolveram em complicados problemas de ordem legal e criminal é desconcertante. Outras metrópoles mundiais foram capazes de superar a violência urbana e são exemplos concretos de que o Rio de Janeiro também pode sair desta situação.
* Davi Lago é professor, coordenador de pesquisa no LABÔ/PUC-SP e doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da USP – Largo do São Francisco