Respeito recíproco em sociedades plurais
Artigo do ensaísta Davi Lago lembra que a tolerância é a condição básica da convivência democrática e da redução da agressividade entre os atores políticos

A manutenção da ordem democrática inclui o respeito às regras do jogo e o respeito recíproco entre os agentes políticos. Enquanto o primeiro aspecto está bem atrelado ao império da lei, o segundo pode soar como um anseio romântico e desaparecer na neblina das opiniões pessoais. Mas não deveria ser assim. Um breve exame do arcabouço teórico da política moderna revela que o respeito cívico mútuo tem um papel estruturante nas sociedades plurais.
O ponto de partida é entender que há uma grande diferença entre espaços políticos que abrigam comunidades homogêneas e espaços políticos que abrigam sociedades fragmentadas. A diferença é que em comunidades homogêneas não há sentido falar em tolerância. A razão é simples de entender: comunidades são construídas a partir de valores comuns que organizam as interações entre seus participantes. Nestes espaços há comunhão de memórias, linguagens, tradições, costumes. Assim, os laços intracomunitários e os horizontes comungados entre os membros da comunidade tornam a ideia de tolerância sem sentido. Mas essa situação muda completamente em espaços onde não há vida comum, ambientes onde indivíduos e grupos se rejeitam mutuamente, onde não existe concordância sobre valores mínimos. São espaços caracterizados por fatores como ódio mútuo, ressentimento do passado e incompatibilidade de projetos para o futuro. Nestes cenários fraturados, a tolerância é mais que desejável, é necessária para a coexistência.
A prática da tolerância, por sua vez, é impossível se não existir um fio mínimo de reciprocidade entre os diferentes. Tolerância não é apenas a atitude isolada de uma das partes, aberta à outra, disposta a reconhecer e respeitar o direito da outra, mas a abertura e respeito de ambas as partes, uma pela outra. A estrutura conceitual da tolerância direciona a mesma exigência às partes diferentes: o reconhecimento recíproco que permite a coexistência. Essas balizas conceituais, presentes em distintas teorias da tolerância, jogam luz na tática totalitária de dividir a sociedade em “nós” contra “eles”. Como demonstra a história recente, o sintoma marcante do avanço fanático e totalitário é a divisão, especialmente a negação do diferente. Estas divisões, além de inúteis para o governo de uma sociedade plural, limitam a capacidade de empatia entre outros cidadãos, levando à justificação do tratamento desumano – podendo chegar em casos extremos de genocídios e campanhas de limpeza étnica, como ocorreu em Ruanda e na Alemanha nazista.
Yves Charles Zarka afirmou que a ideia de tolerância implica necessariamente reciprocidade: “ela supõe, portanto, que se seja capaz de abandonar a perspectiva unilateral que é espontaneamente a do nosso eu individual ou coletivo para deixar subsistir, frente a si, o outro em sua existência e direito”. Este arranjo é sempre conjuntural, ou seja, depende das circunstâncias específicas do momento histórico. O fundamento da tolerância é a ausência de fundamentos absolutos que se identificam entre um indivíduo e outro, entre um grupo e outro, entre uma cultura e outra. Ou como afirmou Diogo Pires Aurélio, “a tolerância não é senão esse consenso, intrinsicamente precário, que surge no lugar declarado vago após o exílio das ortodoxias”. É, portanto, uma condição básica da convivência democrática a redução da agressividade entre os atores políticos. A coabitação da diferença na pólis só é possível com um mínimo de respeito mútuo.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo