Precisamos de fé para seguir adiante – mesmo na dureza da pandemia
Artigo do teólogo Rodolfo Capler observa a importância do conceito filosófico da fé como condição para manter-se em movimento na vida

Søren Kierkegaard, grande filósofo dinamarquês, considerado o precursor da filosofia existencialista, em sua seminal obra Temor e tremor, afirmara que se “Abraão tivesse pensado na loucura da viagem, não teria partido”.
Kierkegaard, que influenciou pensadores de renome como Sartre, Heidegger, Barth, Jaspers, Buber, Marcel e tantos outros, se ampara na Bíblia Hebraica – enfatizando a narrativa do capítulo 22 do livro do Gênesis -, e desenvolve o sentido de sua filosofia existencialista, discorrendo sobre a crise de fé de Abraão. O registro do Gênesis revela que Abraão (que à época se chamava Abrão), partiu da região de Berseba em direção ao Monte Moriá, para sacrificar seu único filho Isaque, em obediência a Deus. O pedido que a divindade lhe fizera era insano, nonsense e acima de tudo, absurdo; Abraão deveria imolar seu filho – fruto de promessa divina e cujo nascimento lhe fora tão aguardado – em sacrifício a Deus, como um ato de fé.
Conforme afirmara Kierkegaard, se Abraão se amparasse na lógica do que faria, não teria agido em fé e obedecido a Deus. Em linhas gerais, segundo a filosofia existencialista kierkegaardiana, a essência da fé não é outra, senão essa: caminhar sem garantias. Abrão parte sem salvaguardas, com os olhos no horizonte da fé. No monte Moriá, enquanto se prepara para sacrificar seu filho, é surpreendido por Javé. O Deus dos judeus lhe provê um cordeirinho como sacrifício para ser imolado no lugar de seu filho Isaque.
Abraão age ancorado na esperança de que o próprio Deus ressuscitaria seu filho no final; por isso é aprovado por Deus e é abençoado por sua grande fé. Ele recebe a alcunha bíblica de “o pai da fé” e é considerado pelo filósofo dinamarquês, como “o cavaleiro da fé”.
A fé de Abraão – esquadrinhada por Kierkegaard em sua filosofia – nos serve como um modelo a ser seguido em nossa trajetória pela vida. A todo momento, somos desafiados a exercer fé; ou nos deixamos paralisar diante dos inúmeros desafios e demandas que nos interpelam ou seguimos em frente. Contudo, não podemos prosseguir avante com garantias de que as coisas melhorarão. Nesse sentido, a fé se imiscuí com a utopia. Assim como a utopia (que segundo Galeano serve para que continuemos caminhando), a fé nos permite enxergar uma janela de oportunidades em meio ao caos. Com fé nos movemos e seguimos fazendo o bem, lutando por justiça num mundo marcado pela injustiça.
Dessa forma, mais do que nunca, necessitamos de fé para seguir adiante na vida. Em tempos pandêmicos como os que estamos vivenciando, em que o medo e o pânico nos assaltam e num país como o Brasil, dividido por forte polarização política em que predominam a desinformação, a truculência, o fundamentalismo e o negacionismo científico, caminhar é preciso.
Que relembremos os versos do nosso grande poeta Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Fazer a hora é agir com fé. Que continuemos a caminhada da vida com muita fé no futuro. No final, as coisas melhorarão.
* Rodolfo Capler é pesquisador, teólogo e escritor