Por que o Brasil não pune oligarcas russos?
Daniel Lança analisa o caminho jurídico para que o país possa bloquear bens e punir oligarcas russos que fizeram fortuna com corrupção
Nas últimas semanas, países como EUA, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França e Itália impuseram graves sanções econômicas a oligarcas russos sabidamente envolvidos em corrupção, que vão desde iates confiscados a fortunas congeladas. Tais medidas visam pressionar o bolso dos maiores apoiadores de Putin com o objetivo de enfraquecer a economia russa e prejudicar os esforços de continuidade da guerra. Mas por que, no Brasil, não há qualquer sinal de tais restrições?
No contexto geopolítico, mirar nos cleptocratas russos vai ao encontro da estratégia da coalizão ocidental de atacar financeiramente (ao invés de militarmente) a Rússia, sobretudo porque tais bilionários tendem a colocar boa parte de seu patrimônio ilícito em países democráticos, ainda que por meio de offshores. Até agora, a guerra ainda não acabou, mas é certo que o estrago feito é significativo. Para isso, fora criada uma unidade especial, entre países do ocidente – liderados pelo Department of Justice estadunidense (DoJ) – capaz de impor sanções econômicas aos oligarcas russos a partir de linhas de investigação anticorrupção.
Isso porque grande parte desses oligarcas faz parte do alto escalão do Kremlin ou tem laços financeiros como o próprio Putin. Eles se apoderaram do Estado russo, que se retroalimenta da corrupção sistêmica, e desenvolveram seus negócios à base de suborno, fraude, privilégios estatais e lavagem de dinheiro.
A presença de cleptocratas russos, por sinal, não está restrita apenas a países europeus ou aos EUA. Recente reportagem da BBC mostrou que pelo menos quatro desses bilionários – presentes na lista de sanções econômicas internacionais – possuem laços estreitos com o Brasil. Dentre eles, Andrey Andreevich Guryev, que é presidente do Conselho Empresarial Rússia-Brasil e, em fevereiro desse ano, foi condecorado com a medalha da Ordem do Rio Branco pelo presidente Jair Bolsonaro.
Juridicamente, é possível puni-los também no Brasil. A legislação anticorrupção brasileira possui, desde 2013, legitimidade jurídica para investigar e punir o suborno transnacional, isto é, a prática de corrupção contra a administração pública estrangeira, independentemente da nacionalidade do autor, sobretudo com aplicação de multas e confisco de bens. Para tanto, é preciso apenas que estes oligarcas tenham bens ou negócios no país capazes de suportar os efeitos da responsabilização cível ou administrativa, inclusive mediante o arresto liminar, como aconteceu recentemente nos EUA e Europa.
Vale dizer, tal punição não se confunde com a responsabilidade criminal, cujo cumprimento de sentença condenatória contra estrangeiro dependeria de intrincada burocracia no Brasil. No caso da Lei Anticorrupção, eventual responsabilização independe do autor ser brasileiro ou estrangeiro, e sua efetividade depende apenas da existência de bens no Brasil.
Portanto, em tese caberia à Procuradoria da República abrir investigação, a qualquer tempo, para apurar a prática de atos de corrupção de tais oligarcas contra o Estado russo, mesmo a contragosto de Putin. O grande problema seria a capacidade de produzir prova de fortes indícios de corrupção nacional ou de lavagem de dinheiro internacional, o que obviamente não viria oficialmente da Rússia.
Duas alternativas seriam plausíveis nesse caso. A primeira seria possível caso o Brasil tivesse a figura do unexplained wealth order, instituto jurídico sugerido nas Novas Medidas contra a Corrupção que requer explicação sobre possível riqueza incompatível na posse de pessoas suspeitas de atividades criminosas. A outra seria o fortalecimento de cooperação jurídica internacional, inclusive para que os outros países possam compartilhar provas já produzidas em outras jurisdições, inclusive nesse caso específico. Ambas inexistentes por clara falta de vontade política.
Se quisermos de fato punir oligarcas russos por corrupção internacional, será preciso sair de uma zona de letargia para corajosa ação efetiva, que engloba cooperação entre as nações na luta contra a grande corrupção em todo o mundo, especialmente em circunstâncias como as atuais. Parafraseando Dante Alighieri em ‘A Divina Comédia’, os lugares mais quentes do Inferno estão reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise.
Daniel Lança é articulista e advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e sócio da SG Compliance