Por que devemos ouvir Gilberto Gil neste domingo?
Daniel Fraiha relembra show da paz e as letras do cantor para o dia da eleição

Hoje é um dia de nostalgia e esperança. Mais do que isso. De nostalgia da esperança. Um misto de sentimentos traduzido perfeitamente por uma imagem de setembro de 2003, quando Gilberto Gil fez uma apresentação linda na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e colocou o secretário-geral (e nobel da paz) Koffi Annan para tocar atabaque ao seu lado. Era o Show da Paz. Um show que tem feito muita falta ao Brasil, em todos os sentidos.
Neste domingo em que o Brasil vai decidir o futuro do país, Gil talvez seja um dos maiores símbolos e oráculos a se ouvir. Suas músicas, sua história, suas lições são a sabedoria e a esperança unidas numa mente e num coração abençoados, um guia para nosso futuro tão maltratado. Para a volta da nossa paz.
Nestes últimos quatro anos, vimos de perto tantos horrores, tanta desumanidade, uma beligerância diária, voluntária e desmedida, por parte de quem devia nos governar, que aos poucos a energia foi se esvaindo. O sentimento de desesperança, de angústia, de exílio em nossa própria terra, tem sido uma constante. Até a vontade de dialogar com quem amávamos se esvaiu muitas vezes, diante de tanta incompreensão. Ficou a dor às vezes revolta, às vezes silenciosa, tão bem cantada por Gil.
Quantas vezes “eu pensei em mim, eu pensei em ti. Eu chorei por nós”? Quantas vezes viemos “parar na beira do cais, onde a estrada chegou ao fim, onde o mar arrebenta em nós, o lamento de tantos ais”¹?
Tantas vezes tentamos falar com Deus, ficamos a sós, apagamos a luz, calamos a voz. Aceitamos a dor, comemos o pão que o diabo amassou. Nos vimos tristonhos, nos achamos medonhos. Dissemos adeus, muitos, e apesar do “mal tamanho”, tentamos nos alegrar².
Quantas vezes quisemos fugir para “qualquer outro lugar ao sol”³?
Quantas vezes nos sentamos “na grama do Aterro, sob o sol, ob-observando hipócritas, disfarçados, rondando ao redor”⁴?
Quantas vezes tentamos gritar que “ser diferente é normal”? Que “todo mundo tem seu jeito singular de ser feliz, de viver e de enxergar”? Que “todo mundo tem que ser especial, em oportunidades, em direitos, coisa e tal… Seja branco, preto, verde, azul ou lilás”⁵.
Tantas vezes nos vimos “nessa multidão boiada caminhando a esmo”⁶, debaixo de tanto ódio, que ficou fácil responder “quem poderá fazer aquele amor morrer?”.
Mas hoje é dia de acreditar de novo na semeadura. Se tivemos que “morrer pra germinar”, chegou a hora de “plantar nalgum lugar, ressuscitar no chão”⁷.
Chegou a hora de acreditar que tudo vai dar pé⁴. De voltar a andar com fé. De saber que “a fé tá na mulher”, que “a fé tá na Maré”. E que “a fé não costuma faiar”: ela tá “viva e sã”⁸.
Chegou a hora da Refazenda, de reassumir o Brasil, refazendo tudo⁹.
Chegou a hora de deixar a paz invadir de novo nossos corações, “como se o vento de um tufão arrancasse nossos pés do chão, onde já não nos enterramos mais”¹.
Chegou a hora de a paz “fazer um mar da revolução. De invadir nossos destinos, a paz”¹.
Hoje é o dia de voltar a ter esperança, de acreditar na Bahia, que sempre nos deu “régua e compasso”, para que nosso caminho pelo mundo volte a ser traçado por nós mesmos.
Hoje é dia “de uma estrela cadente se jogar só pra ver a flor do seu sorriso se abrir”. E “há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir”¹⁰.
É o dia de dizer: “Pra você que me esqueceu, aquele abraço!”¹¹.
Hoje é o dia de cantarmos Gil de peito aberto, para que o país volte a ser o Brasil da paz.
Que o show da democracia deste ano relembre aquele palco da ONU de 2003. E que os violões e os atabaques dos brasileiros nos deem de volta a chance de cantar a paz.
*Referências a trechos das seguintes letras de Gilberto Gil: ¹A Paz / ²Se eu quiser falar com Deus / ³Vamos fugir / ⁴Não chore mais / ⁵Ser diferente é normal / ⁶Lamento Sertanejo / ⁷Drão / ⁸Andar com fé / ⁹Refazenda / ¹⁰Estrela / ¹¹Aquele Abraço
* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro