A vergonha da igreja evangélica no 7 de setembro
Os evangélicos, o presidente Bolsonaro e o Dia da Independência
Existe (ou existiu) uma regra ética dentro das igrejas: púlpito não é palanque e palanque não é púlpito. O meu avô, reverendo Uriel de Almeida Leitão, seguiu isso à risca na Igreja Presbiteriana de Caratinga, interior das Minas Gerais, apesar de ter uma visão política do que deveria ser o melhor para o Brasil, em sua época.
Ele era de uma escola diferente de pastores brasileiros, hoje cada vez mais raros. Diria até que se trata de uma espécie em extinção. Pastores que, de fato, estudaram teologia. Fez seminário em Campinas, onde passou cinco anos estudando todas matérias, inclusive as que permitiam a comparação de textos religiosos.
Ele e mais dois irmãos pobres, que saíram de Garanhuns, interior de Pernambuco, passaram fome na infância, e tiveram que trabalhar no colégio onde conseguiram bolsa para estudar e ter uma vida digna. Os três plantaram igrejas (é assim que se chama na visão protestante) em Minas e no Espírito Santo e pregaram até morrer, sem envolver as comunidades em confusões político-partidárias.
Tenho tios e primos pastores, todos formados em teologia. É preciso ter muito respeito pelo trabalho de pastores sérios ao redor do mundo. Contudo, é necessário colocar o dedo na ferida: o que acontece no Brasil desde 2018 é uma vergonha sem precedentes para a fé cristã.
A igreja protestante brasileira se transformou em um rio largo, mas raso no entendimento do que é realmente o cristianismo. E isso porque o movimento pentecostal levou ao aumento das igrejas evangélicas que abandonaram totalmente o estudo teológico. A doutrina deixou de ser aprendida e ensinada. Banalizou-se a ordenação de pastores que nunca estudaram teologia – esses são, até hoje, os “escolhidos do Senhor” em igrejas familiares, que mais parecem negócio que um centro de transformação espiritual.
E está aí a raiz do problema. Em sua maioria, são essas igrejas, com líderes despreparados, que têm feito o trabalho sujo de venderem seus templos e os transformarem em verdadeiros redutos eleitorais do presidente Jair Bolsonaro.
São igrejas com esquemas piramidais que abusam das ovelhas e fazem uma lavagem cerebral nos membros, usando o medo como forma de controle, medo de Deus, mas também do “comunismo” que teria o poder de destruir o país. A mesma ladainha sem noção do presidente que eles tanto admiram. A Igreja Universal do Reino de Deus é uma grande, poderosa e lucrativa empresa. Sejamos honestos.
Eles sabem que não há ameaça comunista coisa nenhuma. É a retórica mentirosa e útil para quem quer criar um “inimigo”. Jair Bolsonaro, o presidente, se apresenta como representante da “família brasileira“ nessas igrejas. Não passa em qualquer código dessas mesmas congregações. Casou três vezes. Os pastores, os Silas e RR. Soares, esquecem convenientemente o que dizem contra o divórcio. Bolsonaro afirmou, por exemplo, que usava o dinheiro do auxílio-moradia “para comer gente”. Estava solteiro à época.
Mas essa contradição é até menor. O pior é apoiarem um presidente que defendeu e apóia abertamente a tortura. “Vocês sabem que sou a favor da tortura”, disse, certa vez, como se fosse natural. Jesus, o filho de Deus para os cristãos, morreu sob um longo martírio de tortura, até que seu corpo não resistiu.
Uma lição que fica da leitura dos evangelhos é a forte empatia que Jesus demonstrou em relação a todos os que sofriam. Há vários momentos de puro amor, em que ele superou preconceitos para se aproximar de estrangeiros, das mulheres, de portadores de doença, como a lepra. Ele demonstrou compaixão por uma mulher com excesso de “fluxo de sangue”, como contado no livro de Marcos. A verdade é que Ele, de acordo com a fé cristã, sacrificou-se por compaixão pelo mundo.
Bolsonaro jamais demonstrou qualquer sentimento em relação às famílias que sofrem no Brasil na pandemia, em números assustadores. Pelo contrário, sua falta de solidariedade é exibida através de inúmeras declarações bizarras.
“Pastores” soltaram fogos quando ele venceu as eleições em 2018. Diziam que o “Brasil venceu”, que “Deus venceu”. E mesmo hoje, depois de dois anos e meio de ofensas diárias aos valores cristãos, de culto às armas, eles não viram motivo para mudar de orientação. Poderiam ser isentos, apenas.
A bancada evangélica na Câmara já foi envolvida em diversos escândalos, até com desvios de dinheiro público. Condenam a “teologia da libertação” para conseguirem enriquecer com a “teologia da prosperidade”.
Enquanto isso, Bolsonaro, sejamos sinceros, é um homem sem religião, que se diz católico, mas não pratica nada. Ainda assim, conseguiu ser idolatrado por evangélicos.
Vou dizer por que. Esses pastores são, na verdade, atores políticos da extrema-direita brasileira, fundamentalistas e com traços fascistas, que acreditam saber quem vai para o céu, e quem será enviado ao inferno.
Nada mais grave que isso, como se pode ver agora no Afeganistão. Eles são atores da direita radical, com viés ideológico e confundem o papel que deveriam exercer em relação aos fiéis. Até porque não estudaram de fato para isso.
Os cristãos mais atentos sabem que a Jesus “se compadece dos ímpios ou daqueles que se desviam”, ou seja, até de Bolsonaro. Isso é o mais engraçado e curioso. Aí, a regra vale para todos os candidatos, inclusive para Lula, tão odiado entre a maioria dos pentecostais. E é por isso que não se deve confundir púlpito com palanque, e palanque com púlpito.
Próximo ao 7 de setembro, após a escalada de ameaças de Bolsonaro à democracia na preparação dos atos do Dia da Independência, líderes evangélicos mais lúcidos soltaram uma nota pregando a paz. Ela é importante, mas ficou um pouco ambígua. Nessas alturas dos acontecimentos, após tudo o que ocorreu nos últimos três anos, é necessário que as boas igrejas sejam mais incisivas e claras. Que separem o joio do trigo.
As últimas pesquisas mostram uma queda de apoio no segmento a Bolsonaro. Mesmo assim, pastores manipuladores tentaram mobilizar o máximo de seus fiéis para as manifestações no 7 de setembro.
Particularmente mesmo, me incomoda, como neto de pastor, ver a distorção do papel dos líderes religiosos que se transformaram, de homens perseguidos na Igreja primitiva, como Pedro e Paulo, em pop stars do mundo atual.
Em Hebreus 11, capítulo da Bíblia sobre a fé, é dito que, quando a Igreja Cristã nasceu, “alguns foram torturados”. “Passaram pela prova de escárnio e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras.”
Hoje, os pastores do Instagram, das redes sociais, enriquecidos pelos dízimos, fazem campanha para Bolsonaro dia sim e dia também, o mesmo que faz chacota da tortura sofrida por brasileiros na ditadura militar, por exemplo. Mas o que importa, não é mesmo? Púlpito já virou palanque e palanque, púlpito. Isso será diferente em 2022? Não tenho fé. Tenham uma boa semana, brasileiros. Evangélicos ou não.