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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog

Odete não morreu e o Brasil também não

Em artigo enviado à coluna, o cineasta Fernando Barcellos mostra que não dá para 'desligar' país ou 'fingir que o capítulo seguinte não é com a gente'

Por Fernando Barcellos
Atualizado em 19 out 2025, 12h09 - Publicado em 19 out 2025, 12h02

Nas ruas da CDD, favela onde me criei, a rua era campo de guerra e de sonho. Lá a gente via o que criança nenhuma deveria ver. Quando o sangue esquentava, alguém gritava: “quem cuspir no chão xingou a mãe do outro”. Pronto, o mano a mano tava liberado. Dedo no olho, chute na canela, gravata no pescoço — valia de tudo, ou quase, afinal a gente tinha uma regra: não podia morder nem puxar o cabelo, mesmo que, na época, a maioria de nós não tivesse nenhum. Em 96, corte de negão era careca. Minha mãe trabalhava de empregada doméstica na casa de madame. 

Um dia eu fui trabalhar com ela e fui chamado pela dona “Helena”, não sei se o nome era esse, mas tinha cara de Helena. Cheguei na sala e ela me disse que iria me dar um presente. Recebi de suas mãos um kit de viagem da Varig, daqueles de primeira classe, com sabonete, toalha personalizada e uma escova de dentes que, pelo menos, não estava usada. A “dona” Helena disse que estava me dando o presente porque, como eu nunca iria andar de avião, aquilo era pra eu “sentir o gostinho” de como é a first class. Eu só tinha 10 anos, não sabia nem o que significava aquela palavra, somente alguns anos depois quando fui para o Senegal de primeira classe e recebi o mesmo kit foi que a ficha caiu. Eu até trouxe a bolsinha com os utensílios para dona Helena, mas ela já tinha partido dessa para uma melhor. Bom, voltando à história, eu fui embora para casa com muita raiva, porque o presente não era um brinquedo. Inocência a minha… 

Hoje entendo que, na verdade, o brinquedo era a gente, que vivia dentro de um país dividido entre quem viaja e quem fazia as malas de quem iria viajar. E é nesse ponto que o jogo começa. Porque o Brasil é um grande cassino legalizado da desigualdade. Lá na CDD, o “vale-tudo” tinha regra. Aqui fora, no Brasil dos grandes, não tem. Mataram Odete Roitman, mas ela nunca morreu. Nem a de 1989 nem a de agora. Lá atrás a gente queria ter direito a voto, queria acordar para um novo tempo sem ditadura, queria o preço do feijão cabendo no bolso. Hoje, por mais que o país tenha conquistado avanços importantes nas políticas sociais, a desigualdade continua. Nas favelas, o vale-tudo segue firme, só mudou de arena. Agora o ringue é digital, iluminado pelo brilho falso das promessas de enriquecimento instantâneo. 

O sonho de “ser alguém” agora cabe dentro de um aplicativo, o futuro está a um clique de distância, e a aposta virou esperança. O povo joga o pouco que tem, acreditando que o próximo giro vai ser o passaporte para uma vida melhor. Mas, infelizmente, a vida real de quem tá na labuta é diferente – e o que chega é o boleto, o desespero, o empréstimo consignado. O Brasil virou um cassino a céu aberto, onde a sorte é vendida como solução e a ilusão é tributada. Enquanto o trabalhador aposta o pão, os donos do jogo seguem brindando em dólar e pasme, não pagam impostos. Odete Roitman não morreu. Ela segue triunfante, no seu camarote, olhando à distância a miséria e a destruição de quem tem menos. Mas a vida não é feita só de vilões. Existem também os heróis, aqueles que acordam cedo, pegam ônibus e trem para chegar ao trabalho e, mesmo assim, ainda acreditam que dá pra viver com dignidade. 

Gente que não desiste do corre, que sonha em ver o filho estudar, que inventa a vida e acredita nela, que se apega no invisível e na fé. “A verdade” é que, se o Brasil se olhar na cara, vai perceber que há muito mais Raquel por aí. Gente que transforma dor em dignidade, que reescreve o próprio roteiro todos os dias e que, apesar de tudo, continua acreditando que o país ainda pode ser um bom lugar para se viver. Manuela Dias virou alvo das redes. 

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A novela que ela escreveu se transformou em um espelho que muitos olharam com vontade de quebrar, de criticar, xingar e amar odiar. Todo mundo comenta, filma, posta, marca, mas ninguém larga o controle. Mas, amigos, não me entendam mal, eu não estou aqui pra dizer quem deve ou não criticar uma autora de novela. É só impossível não perceber o paralelo: se temos voz para atacar quem escreve uma história na tela, também podemos usar a mesma coragem com os vilões da vida real. Os que tomam decisões que afetam milhões e raramente aparecem para nos responder. O Brasil é nosso e ele não dá para desligar. Não dá pra trocar de canal. Não dá pra fingir que o capítulo seguinte não é com a gente. É preciso mostrar a cara e incomodar. Porque, quando assumimos nosso papel de autoras e autores da própria vida, é que o roteiro pode mudar. Evoé!

* Fernando Barcellos é ator, roteirista e cineasta

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