O melhor de todos nós, jornalistas: Sebastião Salgado
... e as experiências que tive com o fotógrafo

Tião era um dos homens mais doces e gentis que tive a oportunidade de encontrar. Maior fotógrafo brasileiro e do mundo, talvez da História, jamais teria a coragem de chamá-lo assim. Nas vezes que o encontrei pessoalmente, o chamava de Salgado.
Sebastião, aliás, com esse sobrenome me lembra um versículo bíblico que ainda guardo no coração mesmo me afastando da fé cristã: “Vós sois o sal da terra… Vós sois a luz do mundo”, diz o livro considerado sagrado.
Talvez por essa sensação ser de muita gente, o documentário feito pelo filho dele, Juliano, em parceria com Wim Wenders, tem o titulo de “Sal da Terra”.
Sim, Sebastião salgou o mundo ao mostrar, com sua luz, os locais do planeta onde mais doía: na devastação das florestas, na pobreza africana, os refugiados. Também gostava de lugares inóspitos para mostrar o quão pequenos somos.
Não ele, obviamente.
Sebastião Salgado deixa um legado enorme, que ecoará para sempre entre aqueles que realmente acreditam que o mundo corre riscos, e que o meio ambiente precisa ser cuidado antes que seja tarde. A Amazônia grita por socorro. O maior fotógrafo do mundo sabia disso.
Passou os últimos 10 anos fotografando os povos originários na Amazônia para mostrar o perigo que eles correm, e como isso tem aumentado.
Na mesquinhez dos anos Bolsonaro, Salgado me ligou para passar um furo – agora, após a sua morte, posso contar. Jornalistas não revelam fontes, mas vale contar diante do absurdo: a Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu devolver 15 quadros com imagens doadas pelo fotógrafo.
O acervo era resultado do trabalho realizado por Salgado, em parceria com a própria Funai, junto à etnia Korubo do Coari, no Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas, uma das etnias mais ameaçadas do mundo.
Dei a reportagem, que teve forte repercussão, e outras suítes, como chamamos nas redações que podem ser lidas aqui, aqui e aqui. Aquilo trouxe enorme indignação à sociedade e a mim, que tenho contato e fiz inúmeras reportagens com os Korubo do Javari.
Mas a matéria que mais gostei de fazer com ele foi publicada há 20 anos. Recebi o convite dele e corri a Aimorés para contar a história do fotógrafo que estava fazendo o replantio de toda uma fazenda de sua família que havia sido usada para criação de gado.
Salgado devolveu milhares de hectares de árvores à Mata Atlântica, num trabalho importantíssimo para a região de Minas e algumas espécies de animais. Ele adorou o texto que republico abaixo. Vá em paz, Sebastião. Que privilégio foi o de ter conhecido não só você, mas sua alma única.
Leia abaixo a reportagem que ele tanto gostou de ler, e que me deu a chance de tomar uma cachaça e um café com Tião
Floresta em construção
Em Aimorés (MG), a Mata Atlântica está retomando um pouco do que lhe foi roubado pelo gado. O fotógrafo Sebastião Salgado é mentor dessa subversão verde.
Por Matheus Leitão
Chegamos ao ano 505 desde o descobrimento do Brasil e nosso território, onde antes o verde se espalhava, está todo ocupado por desmatadores. Todo? Não. Numa pequena aldeia da Gália… quer dizer, de Aimorés, Minas Gerais, um pelotão ambiental resiste e lembra os irredutíveis gauleses da história em quadrinhos sobre a Roma antiga. Nos últimos cinco anos, devolveu 253 hectares à Mata Atlântica, verdadeira dona daquelas terras.
Como na saga dos heróis Asterix, Obelix e Panoramix, em Aimorés também existem personagens com superpoderes envolvidos na luta. O principal deles é o fotógrafo Sebastião Salgado, dono da fazenda Bulcão – uma das maiores da região do Vale do Rio Doce -, onde o pasto está virando mata fechada. Conhecido por lá pelo apelido de Tião, Salgado herdou a fazenda do pai, comprou a parte das sete irmãs e, com ajuda de sua mulher Lélia, criou o Instituto Terra, uma ONG ambiental.
Na época do Sebastião Salgado pai, o consenso era desmatar para fazer pastagens e criar o maior número possível de cabeças de gado. Hoje, nas mãos do filho famoso, em vez do capim para engordar bezerros, o que cresce na fazenda Bulcão são árvores de peroba, angico e outras espécies da mata atlântica. O pai do fotógrafo chegou a testemunhar a transformação da fazenda antes de morrer em 2002. Adorou o que viu.
No ano passado, entre as viagens pelo mundo para fotografar o seu novo projeto, Gênesis, Salgado esteve na fazenda quatro vezes. Quando dá, ele apeia na área para acompanhar o trabalho árduo de preparação das mudas e plantio das árvores. “As pessoas pensam que estamos reflorestando a antiga mata atlântica. Mas estamos criando uma nova. O homem derrubou tudo. Não se pode comparar uma mata desenvolvida durante 13 mil anos com uma criada agora”, explica o superintendente executivo do Instituto, Ricardo Rocha.
O processo de criação de uma floresta é longo e trabalhoso. Serão precisos mais dez anos para ocupar todos os 650 hectares da fazenda com mata atlântica e outros 20 para vê-la atingir a idade adulta. A reportagem de O Eco acompanhou um dia na manutenção do plantio de espécies de árvores em 9,3 hectares. Isso representa apenas 1,5% da área da fazenda. As mudas foram plantadas em novembro e dezembro e ainda estão muito pequenas. Nesta fase, são frágeis. Não sobrevivem ao violento capim braquiária, plantado ali durante décadas e que insiste em reaparecer.
Sob um sol escaldante, funcionários arrancam a braquiária para dar espaço ao crescimento da mata. Os cipós também são retirados um a um. Apesar de serem nativos de uma mata atlântica desenvolvida, eles são fatais para as mudas. “Braquiária é agressivo à recomposição da mata atlântica. Mata as mudas pequenas. Teremos que combater sempre. Os cipós, não. Assim que a mata crescer, deixaremos eles seguirem seu curso natural”, ensina o gerente ambiental do Instituto, Jaeder Vieira.
Até a mata recuperar o espaço que é seu por direito, o trabalho passa por vários estágios. No início, as sementes são plantadas em pequenos tubos com o substrato, como os pesquisadores chamam o solo ideal para a produção e o desenvolvimento das mudas. Já são 160 as espécies da mata atlântica desenvolvidas no viveiro do Instituto Terra. Depois de plantadas, aquelas que não toleram muito sol seguem para a estufa. Lá, cerca de 60% da luminosidade é retida. Mais tarde, elas vão se juntar às outras, que agüentam a violência do sol e são plantadas diretamente no solo. O processo demora meses e as árvores só podem ser “introduzidas” no período das chuvas. Desde o início do projeto, em 1999, 280 mil mudas foram produzidas e plantadas na fazenda Bulcão. Duzentas mil só no ano passado.
Outra faceta do Instituto Terra é a propagação da cultura da preservação da mata atlântica por toda a região do Vale do Rio Doce. Os produtores locais vivem do agronegócio e dificilmente concordariam em plantar árvores em toda a área de pastagem. Mas os técnicos procuram convencê-los da importância de preservar ao menos alguns trechos estratégicos. “Eles podem recuperar a mata em volta de uma nascente. Isso é muito importante para o ecossistema”, diz Jaeder. O processo começou ali mesmo, no município de Aimorés, espremido na divisa de Minas com o Espírito Santo, e já chegou a 51 municípios.
A disseminação da consciência ambiental está ligada às atividades de educação e cultura oferecidas pelo Instituto. Já foram realizados 156 cursos e eventos, levando a mensagem para a cabeça de 3.412 alunos. Desses, alguns poucos se transformam em monitores, responsáveis por propagar as informações para outros grupos. Têm entre 5 e 15 anos de idade e são carinhosamente chamados de “terrinhas”.
Os adultos também têm a chance de aprender com a proposta e implantá-la em outros lugares. Onze técnicos agrícolas iniciam, no dia 28 de fevereiro, um curso prático de dois anos na fazenda Bulcão. Eles vão morar na fazenda e viver o dia-a-dia do reflorestamento. Até os gringos entraram na roda. Todo fim de ano, um curso de três meses é oferecido a 20 alunos da Universidade de Santa Fé, do Novo México, Estados Unidos.
Na década de 90, Sebastião Salgado percorreu o mundo registrando as grandes migrações humanas para compor a série Êxodo, que virou referência da fotografia em preto-e-branco. Sua cidade natal foi palco de um fenômeno semelhante. Na década de 70, Aimorés tinha 38 mil pessoas. Dessas, 26 mil viviam na zona rural. De lá para cá, a cidade perdeu 13 mil habitantes e os moradores da zona rural diminuíram 80%. Hoje, dos 25 mil habitantes de Aimorés, somente 6 mil vivem na zona rural.
Ressuscitar um pouco da cultura de Aimorés é um dos objetivos do Instituto Terra. Uma sala de cinema e teatro com capacidade para 180 pessoas foi construída no interior da fazenda Bulcão, resgatando uma época em que Aimorés tinha seu próprio cinema. O projetor e a tela foram doados pelo ator Robin Williams, o astro americano de Bom dia, Vietnã e Sociedade dos Poetas Mortos. Este é outro trunfo que Sebastião Salgado sabe usar a favor do projeto. Sua notoriedade mundial lhe abre as portas para arrecadar doações em vários países, junto a personalidades artísticas e empresariais, e instituições das mais diversas. Em síntese, dinheiro não é problema. Em cinco anos, foram investidos 2 milhões de dólares nos projetos do Instituto.
No novo cinema de Aimorés não passam filmes de Robin Williams. O cardápio atende mais aos filmes de arte e documentário e, principalmente, ao cinema nacional. Mas tudo bem. O ator americano entrou para o quadro de “Heróis do Instituto Terra”, que vai do patrono fotógrafo aos gerentes do projeto, passando pelos cortadores de capim braquiária e chegando a Chico Buarque, uma das muitas celebridades do conselho consultivo. Tem até o ex-vaqueiro Manuel Lopes (foto), funcionário da Bulcão desde a época do gado leiteiro e de corte. Hoje ele cuida dos jardins. “Cheguei na fazenda aos 7 anos”, diz, aos 65. “Minha vida mudou demais. Mas prefiro cuidar de planta que de gado. Bicho dá muito trabalho. As plantas e as árvores dão muito mais paz na gente”.
E, assim, a noite cai sob a aldeia da Gália… digo, Aimorés, enquanto nossos heróis descansam para mais uma batalha.