O fanático só sabe contar até um
O ensaísta Davi Lago se debruça sobre o fenômeno que envolve pessoas "recém convertidas" a uma nova religião ou a um partido político

O que leva alguém adotar discursos e posturas fanáticas? O fanatismo é o partidarismo levado ao extremo. Não se trata de dogmatismo, devoção, obstinação ou até mesmo excentricidade. A essência do fanatismo reside no ódio apaixonado e na tentativa de destruição de quem é compreendido como “inimigo”. Como afirmou Amós Oz, o fanático só sabe contar até um, o número dois é grande demais para ele. Assim, sem uma gota de constrangimento, as pessoas fanatizadas emitem opinões que relativizam com muita facilidade o valor da vida humana, desde que se trate de seus “inimigos”. Chegam até mesmo a “celebrar mortes” dos “adversários”. Como entender este fenômeno?
A pesquisadora Nadia Beider, explica que este fenômeno é conhecido em abordagens acadêmicas como “zelo do convertido”. Há cinco teorias sociológicas básicas que procuram explicar o grande esforço, empenho e dedicação do “novo convertido” dentro de uma comunidade fanatizada: (1) a primeira teoria é a escolha racional, isto é, existe uma maior aderência às regras e práticas do grupo pelo novo convertido, porque ele acabou de escolher “o melhor produto” no mercado religioso. O assentimento a determinado grupo fanático se dá por convicção pessoal do novo convertido, após avaliar as outras possibilidades de engajamento. Enquanto o velho integrante do determinado grupo esteja distante do “primeiro amor”, o novo convertido está próximo do momento de deliberação interna e escolha; (2) a segunda teoria é a seleção, isto é, o novo convertido se empenha exageradamente na comunidade porque quer ser “selecionado”, “aprovado” por seus novos pares, anfitriões ou superiores, em uma clara alusão ao entendimento darwinista da sobrevivência do mais apto; (3) a terceira teoria é a motivação, que procura distinguir os comportamentos dos “velhos membros” da comunidade fanática, com os comportamentos dos “novos convertidos”. Enquanto o membro de berço é preguiçoso, acomodado e muitas vezes indiferente aos preceitos do grupo, o novo convertido está disposto a provar seu interesse em fazer parte daquele grupo; (4) a quarta teoria é a dissonância cognitiva, ou seja, o novo convertido manifesta um zelo incomum como forma de provocar uma “ruptura” com sua identidade anterior. O esforço é no sentido de abdicar de antigos modos de ser, falar, agir e, simultaneamente, lutar para estar conformado às novas normas; (5) por fim, a quinta teoria é a identidade social, isto é, o novo convertido tem uma postura extremamente conectada aos valores e práticas do grupo fanático como forma de mostrar para toda a sociedade seu comprometimento com sua nova comunidade.
É importante destacar que a pesquisa empírica de Beider concluiu que a maior parte das pessoas convertidas a uma dada associação de contornos religiosos (como igrejas, sociedades secretas, torcidas organizadas e partidos políticos) não necessariamente engloba pessoas que realizaram grandes rupturas com suas vidas pregressas. Beider afirma que os novos convertidos habitualmente passam por mudanças graduais de comportamento, não abruptas.
Essas teorias clássicas explicativas sobre o fervor do novo convertido jogam luz sobre o fenômeno dos discursos fanatizados que circulam no debate público brasileiro: o integrante de um grupo fanático busca zelosamente superar seu estatuto precário na comunidade. Todo fanático, ao ingressar no grupo, é seduzido por certa ideia de “redenção”. O ato fanático carrega sempre alguma noção de redenção, pois quer converter “algo comum” em “algo de valor”. O fanatismo sempre abriga alguma noção particular de redenção, de mudança de estatuto de uma condição indesejável para a desejável. Neste apelo redentivo jaz o perigo do fanatismo, pois oferece uma finalidade supostamente ética (moralmente aceitável) para comportamentos que extrapolam a mera devoção pessoal e causam danos coletivos.