O esquecimento e a memória apagada sobre a formação do Brasil
País não olha o passado como deveria, inclusive para compreender as datas que marcaram a trajetória de uma nação desigual
A escravidão e o tráfico de africanos escravizados alicerçaram a formação da sociedade brasileira. Esse é um triste fato histórico que o Brasil precisa elaborar de forma mais profunda. O país foi destino, por exemplo, de cerca 5,3 milhões de pessoas arrancadas da África e transportadas em condições subumanas nos navios negreiros. Dos 12 milhões de africanos chegados aos portos americanos, mais de 40% desembarcou no Brasil, país que mais recebeu africanos escravizados em todo o mundo.
Há cerca de dois séculos, a pressão britânica pelo livre mercado impulsionava o processo de extinção do tráfico negreiro e do regime escravocrata, o que resultou, em 23 de novembro de 1826, na assinatura de uma convenção entre Inglaterra e Brasil para extinção do comércio de escravizados vindos da costa africana, no prazo de três anos.
O tratado deu origem à Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831, que “declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império” e impunha penas aos importadores. Mas a lei não foi efetivamente aplicada, o que lhe rendeu a alcunha de “lei para inglês ver”.
Foi apenas em 4 de setembro de 1850 – há exatos 174 anos, e é nesse ponto que quero chegar, leitor – que a Lei nº 581, conhecida como Eusébio de Queiroz, determinou o fim do tráfico negreiro intercontinental, sem, contudo, restringir a prática da escravidão no país.
Vejam como tudo no Brasil sempre andou de forma lenta quando se trata da correção de injustiças, que se perpetuam até os dias atuais.
Com mais de 500% de lucro, o tráfico de escravizados era tão rentável quanto atroz. Por isso, mesmo com a média de 25% dos escravizados que morriam no trajeto ou, ainda, com a perda total da carga – eventualmente afundada para encobrir as provas do tráfico –, era vantajosa a “reposição de peças”.
Diante dessa realidade, de certo modo, a Lei Eusébio de Queiroz chegou a estimular o tráfico, por ter resultado no aumento do preço da mercadoria humana, e, portanto, do lucro dos traficantes que, durante alguns anos, ainda tiveram na ausência de efetiva coibição, a garantia da continuidade de seus negócios.
Nesse contexto se destaca Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Nascido livre em 21 de junho de 1830, em Salvador foi vendido ilegalmente como escravo pelo próprio pai – um fidalgo de origem portuguesa – aos 10 anos de idade. Autodidata, conquistou judicialmente a própria liberdade e passou a atuar na advocacia, como rábula, em defesa dos cativos. Gama defendeu a tese jurídica de que o escravo que mata o senhor o faz em legítima defesa e, ao longo de sua carreira jurídica, chegou a libertar mais de 500 pessoas escravizadas. Em sua argumentação, costumava, estrategicamente, utilizar como base a Lei Diogo Feijó para “anular a escravidão”, ao provar que o escravizado tinha chegado ao Brasil após a promulgação da lei. Reconhecido como advogado apenas em 2015, Luiz Gama teve seu nome incluído no Livro dos Heróis da Pátria.
23 de agosto é instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como o Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro. A data assinala o início do lento processo de abolição da escravatura de africanos e seus descendentes e está relacionada com a revolta de escravizados que ocorreu na noite de 22 para 23 de agosto de 1791, em São Domingos, território que hoje corresponde ao Haiti e à República Dominicana.
A Revolta do Haiti foi um importante marco no fim do tráfico transatlântico de africanos, um dos capítulos mais cruéis da história. O Brasil – último país do Ocidente a abolir a escravidão – é um dos principais atores desse drama em escala mundial, cujo “legado” permanece vivo, por meio da desigualdade racial, do encarceramento em massa e da violência e morte de jovens negros.
Luiz Gama, na sua obra “Primeiras trovas burlescas”, de Getulino (um de seus pseudônimos) nos lembra que “essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade.”
Olhar para o passado é sempre uma forma de entender a triste realidade do presente.