O curioso caso da corrupção sindrômica
Daniel Lança analisa um paradoxo do combate à corrupção na atualidade que alimenta a prática de atos ilícitos a partir do excesso de controles
Existe uma interpretação clássica que sustenta que corrupção se previne com excesso de controles. De acordo com essa linha de pensamento, quanto mais procedimentos, etapas, documentos ou requisitos protocolares, menor a probabilidade da materialização do risco de suborno. Ledo engano. Como que uma variante de vírus, desenvolveu-se ao longo do tempo uma nova tipologia de corrupção que se alimenta exatamente da burocracia: a corrupção sindrômica.
O paradoxo não poderia ser mais irônico: o excesso de controles não só não mitiga, como faz aumentar casos de suborno, fraudes e outras condutas ilícitas. Isso acontece porque, na corrupção sindrômica, criam-se relações promíscuas oriundas da burocracia estatal que, de tão complexa, aprendeu a criar dificuldades para vender facilidades, gerando um ciclo vicioso.
Desde a concepção da administração pública burocrática, nos idos do século XX, já se compreendia a importância de combater suborno, patrimonialismo, nepotismo e outras fraudes por meio da profissionalização de uma burocracia hierarquizada, com normas rígidas, rotina inflexível e focada no formalismo de procedimentos pré-determinados. Assim, zelando-se pela separação do público e do privado, criou-se uma supervalorização dos controles.
Não é grande novidade que a burocracia – nascida como sinônimo positivo de profissionalismo – viria a se transformar no equivalente pejorativo de ineficiência. Procedimentos, controles e critérios não foram atualizados ao longo do tempo e geraram um emaranhado de caminhos tortuosos que passaram a dificultar o acesso a serviços públicos pelo cidadão-cliente. E a burrocracia, então, gerou outro efeito: o aumento da corrupção, na medida em que fica mais fácil pagar por fora para destravar ou desengavetar solicitações a cumprir o processo convencional.
Esse ciclo vicioso só será quebrado com desburocratização, simplificação ou mesmo a redução do Estado, capazes de otimizar os processos administrativos governamentais; e por meio de compliance, que redefina regras de conduta nos setores público e privado, provendo controles mais modernos que sejam assertivos e equilibrados.
Essa nova roupagem de controle deve ser assertiva, isto é, adequada, suficiente e proporcional para coibir com eficiência as fraudes no momento e na ocasião propícia, de modo que os efeitos colaterais não sejam piores que a doença.
Um ótimo exemplo é a antiga lei de licitações. Sinônimo unânime de burocracia desproporcional e ineficiente, seus controles não foram capazes de mitigar assertivamente a corrupção. É consenso que a lei estruturava um processo de contratação disfuncional, a ponto de demorar, em média, quase um ano para ser concluído. Ao mesmo tempo, especialistas alertavam que o risco maior estava na gestão dos contratos, não na fase concorrencial, errando assim no remédio e na dose.
Os novos controles também precisam ser equilibrados, e não baseados em um punitivismo inconseqüente, que trata igualmente o gestor que erra de boa-fé daquele que comete dolosamente ato ilícito. Se os controles continuarem como estão, dois efeitos serão notáveis. O primeiro é o afastamento de bons profissionais, que evitarão ingressar no serviço público por medo de ações judiciais. O segundo é o chamado apagão das canetas, que aterroriza e amedronta servidores públicos, impedindo a tomada de decisões e paralisando a dinamicidade do Estado. Não raras vezes vi servidores que, por medo, deixaram de tomar decisões importantes, saindo da inércia apenas por comando do Ministério Público ou do judiciário.
A mesma lógica também vale para os próprios dos programas de compliance no setor privado; é preciso que os controles sejam a solução, não o problema. Assim, não é razoável a implementação de controles que, além de não mitigarem com eficiência a corrupção, atravancam os processos de tomada de decisões corporativas.
Por fim, sempre vale lembrar que não bastam apenas controles. O tripé necessário deve ser o de prevenir, detectar e punir. Em outras palavras, não existe bala de prata no combate à corrupção. As soluções são muitas e concomitantes: transparência, controle social, instituições fortes, imprensa livre, democracia pujante e cultura de integridade, aliada a uma burocracia estatal leve e simplificada.
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)