O colapso da fiscalização e o avanço do trabalho infantil no Brasil
Com o menor número de auditores em 35 anos, o país assiste ao crescimento do trabalho infantil e se afasta da meta da ONU de erradicação até 2025

O trabalho infantil voltou a crescer no Brasil e acende um alerta sobre a proteção da infância. Por trás dos números, 1,65 milhão de meninos e meninas entre 5 e 17 anos, está uma ferida social que volta a se abrir: o país está ficando sem fiscais para combatê-la.
Depois de anos de avanços, o Brasil, que já foi referência mundial em ações de erradicação do trabalho infantil, vive um retrocesso silencioso. Dados recentes do IBGE mostram que o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil aumentou 2,1% em 2024.
Desse total, 560 mil atuam em condições perigosas, insalubres ou degradantes, as chamadas “piores formas de trabalho infantil”, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Menos fiscais, mais violações
A escalada ocorre justamente quando o Estado se retrai na linha de frente da fiscalização. Hoje, o Brasil conta com apenas 1.842 auditores-fiscais do trabalho para proteger mais de 100 milhões de trabalhadores, o menor efetivo desde 1989.
A OIT recomenda pelo menos 5.441 fiscais, e o Ipea estima que seriam necessários 8 mil para garantir cobertura mínima em todo o território nacional. “Não há combate efetivo ao trabalho infantil sem a presença do Estado. Onde não há fiscalização, o trabalho infantil cresce e se naturaliza”, alerta um auditor-fiscal com mais de duas décadas de atuação em operações de resgate.
Cerca de 500 auditores devem se aposentar até 2026. E, enquanto isso, 1.838 candidatos aprovados em concurso aguardam convocação para reforçar o quadro e atuar na defesa dos direitos trabalhistas, profissionais prontos para ocupar postos cruciais, mas ainda parados no limbo da espera.
Infâncias interrompidas: o retrato da desigualdade
Os números expõem quem mais sofre com a negligência do Estado. Dois terços (66%) das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são pretos ou pardos. As regiões Nordeste e Sudeste concentram os maiores contingentes, 547 mil e 475 mil, respectivamente.
No campo, o trabalho infantil persiste em atividades agrícolas e extrativistas. Nos centros urbanos, aparece em feiras, semáforos, oficinas, lixões e no trabalho doméstico, frequentemente invisível.
Além do desgaste físico e psicológico, o impacto mais cruel é o abandono escolar. Crianças que ingressam precocemente no mercado de trabalho têm mais chances de abandonar os estudos e perpetuar o ciclo de pobreza. “Cada criança que trabalha é uma infância interrompida e um futuro perdido”, resume Maria Cláudia Falcão, representante da OIT no Brasil.
O Brasil se afasta da meta da ONU
O país é signatário da Meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que previa a erradicação do trabalho infantil até 2025. Mas com o aumento recente, o Brasil se distancia desse compromisso internacional e perde a liderança que um dia exerceu na pauta.
A OIT e o Unicef estimam que 160 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo ainda estejam submetidos a alguma forma de trabalho infantil, sendo 79 milhões em atividades perigosas. Embora o número global tenha diminuído desde 2000, o ritmo de redução desacelerou, especialmente após crises econômicas e sociais recentes.
Um desmonte que ameaça uma geração
No Brasil, a retração da fiscalização trabalhista e a redução dos investimentos em políticas públicas voltadas à infância abriram espaço para o retorno de práticas antes em declínio.
O trabalho infantil é uma violação silenciosa, muitas vezes escondida em casas, roçados e pequenos comércios. Combatê-lo exige presença territorial, articulação com redes locais e atuação contínua, tarefas que dependem diretamente dos auditores-fiscais do trabalho.
“O resultado das faltas de profissionais é que milhares de crianças seguem invisíveis, trabalhando quando deveriam estar estudando e brincando”, alerta um relatório recente do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).