O ‘Almirante Negro’ e seu legado sobre justiça e reparação
Nos 144 anos do nascimento de João Cândido, a coluna faz uma homenagem a um militar - esse sim - que merecia estar no panteão de heróis nacionais
O Brasil tem muitas histórias a serem contadas, ou melhor, muitas histórias a serem resgatadas e recontadas. Não mais exclusivamente sob a perspectiva do colonizador, do ditador, das elites, mas dos grupos, das famílias, das pessoas oprimidas.
Nesse sentido, a história de João Cândido, “O Almirante Negro”, tem muito a nos ensinar sobre justiça, família e reparação, num país que insiste em “enterrar o passado”, como enterrou os corpos do genocídio indígena, os milhões de escravizados negros e os “desaparecidos” da ditadura militar.
Nascido em 24 de junho de 1880 – há exatos 144 anos -, João Cândido Felisberto ainda teve que sentir na pele, décadas depois, as torturas físicas e psicológicas típicas de uma relação de escravidão, mesmo em pleno regime republicano pós-abolição. Em 1895, com apenas 14 anos de idade, alistou-se na Marinha, prestando serviços por longos e sofridos 15 anos, período em que – como muitos outros recrutas negros – foi fisicamente castigado, preso em solitárias e punido com rebaixamento.
Em novembro de 1910, o Almirante Negro – que, na verdade, nunca foi promovido pela Marinha a tal patente – liderou a “Revolta da Chibata”, luta dos marinheiros por justiça e igualdade, tendo como principal exigência a cessação dos cruéis castigos corporais impostos sobretudos aos negros que integravam a Força Naval.
Articulados, os rebelados surpreenderam os oficiais com conhecimentos sobre navegação, tomaram navios na baía de Guanabara e apontaram seus canhões para a então capital federal, exigindo que suas reivindicações fossem atendidas. O governo concordou em pôr fim às punições físicas, mas, depois de desmobilizada a rebelião, traiu o acordo e, ao invés de anistiar os insurgentes – principal objeto do projeto de lei encampado pelo então Senador Rui Barbosa –, promoveu expulsões, prisões e novos castigos corporais.
João Cândido ficou enclausurado por 18 meses em uma prisão subterrânea, tendo sido, posteriormente, internado em um hospital para “alienados”. Passou o resto de seus dias no esquecimento, trabalhando como vendedor de peixes no Rio de Janeiro, onde morreu na miséria, em 1969, aos 89 anos.
Apenas em 2008, João Cândido e outros 600 marinheiros que participaram da “Revolta da Chibata” foram, finalmente, anistiados, o que não garantiu justiça e reparação aos insurgentes e a suas famílias.
Em abril de 2024, o Ministério Público Federal requereu ao Ministério da Cidadania e dos Direitos Humanos o reconhecimento de João Cândido como anistiado político, com os efeitos decorrentes da Lei nº 10.599/2002. O estudo do MPF também foi encaminhado para a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados para subsidiar a apreciação do projeto de Lei nº 4046/2021, que prevê a inscrição do líder da “Revolta da Chibata” no panteão dos heróis e heroínas da pátria.
Em resposta, datada de 22 de abril de 2024 e assinada pelo comandante Marcos Sampaio Olsen, a Marinha se posiciona contra a inclusão de João Cândido no livro descrevendo a revolta como uma “ação violenta” de “abjetos marinheiros”.
É a Marinha que torturou e matou na ditadura militar, participou ativamente na tentativa de golpe do 8 de Janeiro bolsonarista. A mesma Marinha que não apenas a sustentou e aplaudiu a anistia de torturadores – e também condecorou muitos deles – se negando a fazer Justiça a um brasileiro castigado apenas pela cor da sua pele e que lutou pelos valores mais altaneiros, como a liberdade.
Mas o Brasil de 2024 continua a elidir sua própria história, escolhendo seletivamente quem merece ter seus atos reconhecidos como heroísmo, ainda que em detrimento da necessária reparação, sem a qual jamais teremos efetiva justiça.