“Este é o momento de proteger a democracia” – entrevista com Marina Silva
A Rodolfo Capler, a deputada eleita criticou os abusos das lideranças evangélicas, alertou para a crise na Amazônia e defendeu a eleição de Lula

Marina Silva é a cara do Brasil: mulher, negra, acriana, de origem pobre e evangélica pentecostal da Assembleia de Deus. Alfabetizada aos 16 anos, iniciou a sua carreira política em 1984, fundando – ao lado do ambientalista Chico Mendes – a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Filiada ao Partido dos Trabalhadores no ano seguinte, Marina tornou-se vereadora e, posteriormente, deputada estadual, senadora e ministra do Meio Ambiente.
Candidata à presidência da República por três vezes (2011, 2014 e 2018), Marina é uma das mais importantes líderes da política nacional e já ultrapassou a marca de 40 milhões de votos recebidos em sua carreira. Nas eleições deste ano, foi eleita deputada federal por São Paulo com o apoio de 237.521 pessoas, sendo a 12ª mais votada no Estado. No último mês, Marina (Rede) surpreendeu seus eleitores ao oficializar seu apoio ao candidato Lula. “A candidatura do ex-presidente Lula é a única que pode resguardar a democracia e reparar os erros do passado”, disse à coluna.
Nesta entrevista, Marina denunciou o desmonte das políticas ambientais empreendido pelo atual governo, criticou o processo de instrumentalização da fé evangélica para fins políticos e conclamou os eleitores a votarem em Lula, que, segundo ela, é a “candidatura que reúne as melhores condições para derrotar Bolsonaro e colocar freios no bolsonarismo”.
Leia a entrevista completa a seguir:
Rodolfo Capler – A senhora se autodeclara evangélica pentecostal. Como se deu sua conversão ao Cristianismo?
Marina Silva – A minha conversão a fé cristã se deu há muito tempo. Eu venho de uma família católica e fui criada pela minha avó paterna. Foi ela quem me ensinou o catecismo católico quando vivíamos na floresta. O catecismo que aprendi era para analfabetos; não tinha palavras, apenas ilustrações e figuras da Capela Sistina, do Gênesis ao Apocalipse. Assim, desde muito cedo, me identificava como católica (inclusive, quase fui freira). Somente em 1997 me converti à fé cristã evangélica. Costumo dizer que tive uma conversão na conversão. Quando me converti a fé evangélica eu já era convertida ao Cristianismo. Por isso, uso essa expressão “conversão na conversão”, emprestando-a do livro “A volta do filho pródigo” do padre holandês Henry Nouwen. Em 1986, Nouwen vai ao Hermitage em São Petersburgo e contempla a tela “A volta do filho pródigo” de Rembrandt. Em seu livro ele testemunha ter experimentado uma “conversão na conversão”. Isso aconteceu comigo.
Rodolfo Capler – Neste 2º turno da corrida presidencial muitos pastores e cantores evangélicos estão se pronunciando publicamente a favor do presidente Bolsonaro e colocando em dúvida a integridade da fé dos evangélicos eleitores de Lula. O que a senhora tem a dizer sobre esses acontecimentos?
Marina Silva – Não há como fazer um julgamento da fé de quem quer que seja, em função de suas escolhas políticas e ideológicas. O único que pode julgar a sinceridade da nossa fé é Deus. Não são critérios de caráter político ou ideológico que atestarão se uma pessoa é ou não cristã. O modo como isso está sendo tratado vai na contramão do ensinamento de Jesus. Inclusive, todas essas histórias que estão surgindo – de que pessoas estão sendo punidas dentro das igrejas e impedidas de tomarem a Santa Ceia, porque votam em candidaturas à esquerda e na candidatura do presidente Lula – é uma deturpação das palavras de Jesus. Em primeiro lugar, porque Jesus disse que ninguém deve julgar ninguém. Em segundo lugar, em razão do critério para tomar a “Santa Ceia” é “examinar-se a si mesmo”. Após esse “examinar-se a si mesmo”, todos podem participar da Ceia. Ou seja, o critério autoritativo da participação da Santa Ceia é o autoexame de consciência de cada indivíduo e não o aval do pastor ou do padre. Não podemos nos esquecer que as Escrituras dizem que a “mesa é do Senhor” e não do pastor ou da instituição.
Rodolfo Capler – Hoje, no Brasil, o nome de Deus tem sido usado como capital político por parte daqueles que desejam ganhar o coração do eleitorado evangélico. Como a senhora enxerga esse processo de “evangelicalização” da política brasileira?
Marina Silva – Antes de serem religiosos ou irreligiosos, os indivíduos são cidadãos. Isso significa que todos têm uma demanda por participação política – o que é altamente legítimo. Como a política é a ferramenta de resolução de problemas de interesse público, é preciso pensar políticas públicas para todas as pessoas, mediando com os diferentes segmentos da sociedade. A instrumentalização da fé pela política acaba criando uma série de anomalias que impõe no debate político – voltado para o interesse público – questões de natureza religiosa. Isso acontece como se alguém estivesse escolhendo um pastor ou um padre, quando na verdade, se está escolhendo o presidente da República. O chefe do Executivo pode ter a minha fé, assim como pode ter outra fé. O que importa é que ele seja alguém que respeita a diversidade, o Estado laico e faça boas políticas públicas para todos os seguimentos da sociedade, inclusive respeitando a Constituição, que assegura a liberdade religiosa. É a partir desses princípios que as coisas devem acontecer.
Rodolfo Capler – Atualmente como é o relacionamento da senhora com o segmento evangélico?
Marina Silva – Eu continuo ligada à minha igreja. Congrego na Assembleia de Deus em Brasília. O meu pastor é o Hadman Daniel. Quando eu não estou em Brasília eu frequento outras igrejas. Às vezes vou à Igreja Batista de Água Branca do pastor Ed Rene Kivitz ou à Catedral Presbiteriana. Eu frequento os cultos para adorar a Jesus e não para fazer do púlpito um palanque político. A minha relação com os evangélicos é muito respeitosa. Embora eu receba muitos ataques, eu não julgo a fé de ninguém. O próprio Jesus nos instruiu a não julgar as pessoas, porém, nos ensinou que podemos conhecer uma árvore pelos frutos que ela produz. Observar os frutos de uma pessoa é necessário para sabermos se ela é sincera ou não.
Rodolfo Capler – Durante a sua passagem pelo Ministério do Meio Ambiente, entre 2003 e 2008, nos dois governos Lula, a senhora participou da criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado), sendo responsável por uma expressiva queda no desmatamento na Amazônia. Como o Brasil pode retomar o papel de líder ambiental no mundo?
Marina Silva – Pela frente temos um caminho difícil, porém, é possível trilhá-lo. Infelizmente, o atual governo tem como referência não fazer nada e desmontar o que vinha sendo feito, como ocorreu com a desarticulação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). É importante dizer que é perfeitamente possível retornarmos o protagonismo internacional na agenda socioambiental. Foi exatamente por isso que a recomposição política minha e do presidente Lula foi estabelecida em bases programáticas. O documento que foi entregue a ele (com o qual ele se comprometeu publicamente) vai na direção do resgate atualizado da agenda socioambiental perdida. É “resgate” porque foi no governo do Lula que essa agenda – que prioriza o combate ao desmatamento, a criação de unidades de conservação, redução da emissão de CO2 e o enfrentamento da criminalidade nas florestas – começou. Ninguém melhor que ele para resgatá-la. Essa agenda também precisa ser atualizada, pois, a situação atual está incomparavelmente pior que outrora. O Bolsonaro está deixando uma térrea arrasada nas políticas públicas de um modo geral. Na questão ambiental houve um completo desmonte, seja do ponto de vista dos órgãos de monitoramento, de gestão, de fiscalização e de licenciamento. Para retomarmos a nossa agenda ambiental teremos que recompor o orçamento e as equipes (que foram substituídas por pessoas que nada entendem de meio ambiente), e trazermos de volta a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Serviço Florestal para o ministério do Meio Ambiente. Precisaremos também por um barramento no pacote da destruição (que inclui a demarcação das terras indígenas, a grilagem, o pacote do veneno, entre outras iniciativas nefastas) que está tramitando no Congresso Nacional. O documento apresentado ao presidente Lula, é muito consistente. Ele estabelece que a política ambiental de seu governo será uma política transversal. Ou seja, estará presente em todos os setores do governo, incluindo o Ministério dos Transportes, da Energia e da Agricultura. Com a execução desse documento haverá um forte investimento na agenda de desenvolvimento sustentável que permitirá um novo ciclo de prosperidade no Brasil.
Rodolfo Capler – Em maio deste ano o Governo Federal emitiu um decreto regulamentando o mercado de carbono. Quais são as potencialidades disso para o Brasil?
Marina Silva – A questão do mercado de carbono é uma das alternativas, porém está longe de ser a bala de prata no enfrentamento dos problemas ambientais, sobretudo do desmatamento no Brasil. Ainda não temos um mercado nacional regulado de carbono, entretanto há um esforço para que isso aconteça. Na Convenção do Clima nós conseguimos estabelecer as bases para essa regulação, mas no caso do Brasil, ainda não temos a ferramenta do ponto de vista do marco regulatório adequado.
Rodolfo Capler – No domingo 2/10 a senhora foi eleita deputada federal por São Paulo com 237.521 votos. Como o conceito de “justiça climática” permeará a sua agenda política no Congresso Nacional?
Marina Silva – Esse conceito sempre esteve presente ao longo da minha vida. Eu procurei traduzi-lo, na prática, no período em que fui senadora e no tempo em que fui ministra do Meio Ambiente. A justiça climática tem a ver com os danos causados – em função das mudanças climáticas – às populações mais vulneráveis, como as comunidades indígenas, as pessoas que vivem em situação de pobreza e as pessoas pretas que moram em comunidades pobres. A ideia de justiça climática associa-se também com o conceito de “racismo ambiental”, porque é sobre as pessoas mais vulneráveis que os efeitos deletérios das mudanças climáticas incidem de forma muito mais cruel. Quem tem a casa levada pela enchente é o pobre que vive nas regiões periféricas. Quem habita nas periferias? Os pretos e pardos. Por isso, defendo que políticas públicas sejam feitas para todas as pessoas, pois, quando sanamos os problemas que afetam os vulneráveis, resolvemos os problemas de todas as pessoas. Se o problema da injustiça climática for resolvido para os pretos, para as mulheres e para os indígenas, todos serão beneficiados.
Rodolfo Capler – Segundo recentes pesquisas realizadas com a geração Z, os seus membros são extremamente preocupados com o aquecimento global e com as crises climáticas. Essa preocupação tem gerado nos mais jovens a chamada “ecoansiedade” (ansiedade climática). Como pode a nova geração – tão preocupada com as mudanças climáticas – se engajar de forma concreta com as pautas ambientais?
Marina Silva – A juventude já está engajada. Há um movimento jovem no mundo envolvido com as causas ambientais. Penso que quem precisa se engajar com essas questões são aqueles que estão em posição de mando: as empresas e os governos. São essas instituições que podem gerar mudanças em escalas globais. De fato, a juventude sofre insegurança em relação ao futuro, devido às questões ambientais. Eu que já estou com 64 anos, fico imaginando as crises de uma pessoa jovem que pensa em construir uma família. Ela terá dificuldades de prospectar e de ter filhos, pois, não sabe o tipo de mundo que terá para criá-los. Está é uma realidade que está posta. Por essa razão a juventude está cada vez mais consciente e à frente das questões políticas e ambientais.
Rodolfo Capler – Há cinco meses o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista Dom Philips foram brutalmente assassinados por contrariarem os interesses do narcotráfico na região no Vale do Javari, terra indígena localizada no extremo oeste do estado do Amazonas. Que tipo de alerta essas trágicas mortes ainda emitem à comunidade internacional?
Marina Silva – Essas práticas terríveis acontecem ao longo de décadas na Amazônia. Por exemplo, quando o Chico Mendes foi assassinado, cinco pessoas já haviam sido mortas no Acre. Só no governo Bolsonaro mais de 500 pessoas foram assassinadas, sendo 70 ambientalistas e mais de 400 indígenas. Ocorre uma dupla forma violenta de destruição da vida: tanto da natureza, quanto daqueles que se levantam em defesa das florestas e de seus povos originários. O sinal que as mortes de Bruno Pereira e Dom Philips emite é o de que a Amazônia está numa situação de descontrole. Temos algo em torno de 1.260 pistas de pouso clandestinas a serviço do garimpo, da exploração de madeira, do tráfico de drogas e de armas e da pesca ilegal. As queimadas, a exploração, o corte de madeira e a grilagem estão aumentando. Da mesma forma, cresce a pressão para mudar a lei em benefício do crime no Congresso Nacional.
Rodolfo Capler – Qual mensagem a senhora gostaria de deixar aos eleitores brasileiros?
Marina Silva – Estamos diante de uma situação em que não temos mais uma polarização entre democracia versus democracia. O que temos hoje no Brasil é uma disputa entre a democracia e o fim da democracia. É uma batalha entre a integridade da Amazônia e a destruição da Amazônia. É uma escolha entre proteger povos indígenas e destruir povos indígenas. São essas coisas que estão em jogo. Portanto, aqueles que defendem a democracia terão de fazê-lo não somente em palavras, mas sobretudo em gestos e atos. Este é o momento de proteger a democracia. Assim, nesse momento os eleitores têm uma escolha a fazer. Temos diante de nós uma candidatura que reúne as melhores condições para derrotar Bolsonaro e colocar freios no bolsonarismo. Eleger Lula é a única chance que temos de resguardar a democracia e reparar os erros do passado.
Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP